quarta-feira, 5 de junho de 2013

Camões por Camilo Pessanha em Junho de 1924

Artigo de Junho de 1924 publicado na revista Contemporânea (5ª série-nº3) em Julho/Outubro de 1926.
"Dos templos profanos portugueses dedicados ao culto da Pátria e ao culto do génio é sem dúvida um dos mais venerados o modesto jardim de Macau, chamado a Gruta de Camões. Nenhum português absolutamente, nenhum estrangeiro de mediana instrução vem a Macau, mesmo de passagem, cujo primeiro cuidado não seja o de irem em romagem a esse recinto sobre cujo solo é tradição que poisaram os pés do poeta máximo de Portugal – um dos máximos poetas de todo o mundo e de todos os tempos –, enquanto o seu génio elaborava algumas das estrofes de bronze dos Lusíadas. E a nenhuma deixa de invadir, apenas transporte o vulgaríssimo portal de quintalejo suburbano, que dá acesso ao local, um sentimento dominador de religiosidade, a todos impondo silêncio, como se do lado de dentro das duas insignificantes umbreiras de granito estivesse aquela tela que existiu à entrada da cartuxa do Bussaco, onde a pintura de um frade fitava imperativa, com o seu olhar imóvel, os que se aproximavam, erguendo verticalmente diante da boca o indicador da mão direita.
Tem-se debatido desde há anos a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se aqui desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há-de decerto renascer mais animada algum dia; e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa.
É a sorte de todas as tradições consagradas. A crítica histórica, a história-ciência, positiva e experimental, vem fazendo tábua rasa de quando é anedótico e pessoal, das atitudes esculturais, dos gestos dramáticos, das frases eloquentemente concisas, em que tradições lentamente evoluídas, haviam definido, em termos quási sempre de inexcedível beleza, um carácter, um acontecimento ou uma época. Para só me referir à história literária, basta lembrar que, demonstradamente, Homero nunca existiu; e que, quanto a Shakespeare, se é, ao que suponho, incontestado ter havido no século XVI a XVII um actor inglês desse nome, não falta já quem lhe negue a autoria de todas e cada uma das tragédias que o mesmo nome imortalizaram e para apreciação de cujo valor não se encontra termo de comparação mesmo nas supremas criações do teatro grego clássico.
Mas discussões são essas de carácter puramente académico, só interessando à investigação erudita. Se as tradições estão bem arraigadas e vivas, não será a demonstração de sua inexatidão histórica que as poderá destruir. É que não foi nas dissertações dos sábios que elas germinaram e medraram, nem é delas, mas do sentimento popular, que tiram a seiva. A Ilíada e a Odisséia hão-de chamar-se sempre os poemas homéricos; e quando os infatigáveis sapadores que são os historiadores modernos chegarem à conclusão de que Shakespeare não existiu, ou de que não sabia escrever, nem por isso a série de assombrosas figuras animadas que, no Hamlet, no Macbeth, no Otelo, no Rei Lear, se estorcem nas grandes crises das suas paixões sobre-humanas, traduzindo, ampliadas até ao grandioso, todas as modalidades de afectividade, cessariam de construir a galeria das personagens shakespearianas. Há, é certo, lendas e lendas, tradições e tradições: umas sublimes, outras grotescas. Estas são efémeras, aquelas eternas. Basta como exemplo da indestrutibilidade destas últimas o da lenda heróica da Grécia.
A vitalidade das tradições lendárias, ou quási lendárias, depende essencialmente de dois requisitos. É necessário que o objecto a que se referem se imponha pela sua grandeza à admiração contemplativa de todos os tempos. É-o igualmente que a própria tradição, nos diversos factores que a constituem, seja adequada a esse objecto. As tradições pertencem ao folclore, há nelas, preponderante, um elemento estético; e toda a obra de arte precisa, antes de mais nada, de ser bem equilibrada.
Quanto à grandeza gigantesca de Camões, e à da assombrosa epopeia marítima que culminou na formação do vasto império português do século XVI, estão acima de qualquer discussão. Resta apenas ponderar se Macau, esta exígua península portuguesa do Mar da China ligada ao distrito chinês de Heong-Shan, tem qualidades que a recomendem para assim andar associada à memória dessa epopeia e à biografia do poeta sublime que a cantou. Ora essas qualidades tem-nas Macau como nenhum outro ponto do globo. Macau é o mais remoto padrão da estupenda actividade portuguesa no Oriente nesses tempos gloriosos. Note-se que digo padrão, padrão vivo: não digo relíquia. Há, com efeito, padrões mortos. São essas inscrições obliteradas em pedra, delidas pelas intempéries e de há muito esquecidas ou soterradas, que os arqueólogos vão pacientemente exumando e penivelmente decifrando, tão lamentavelmente melancólicas como as ressequidas múmias dos faraós.
A fatalidade do determinismo histórico fez que a colonização portuguesa quási exclusivamente se desenvolvesse a dentro dos trópicos, e, com exclusão de Macau, todas as colónias portuguesas, ou ex-portuguesas de clima relativamente temperado são situadas no hemisfério austral. Assim é Macau a única terra do ultramar português em que as estações são as mesmas da Metrópole e sincrónicas com estas. É a única em que a Missa do Galo é celebrada em uma noite frígida de Inverno; em que a exultação da aleluia nas almas religiosas coincide com o alvoroço da Primavera – Páscoa florida com a alegria das aves novas ensaiando os seus primeiros voos; em que a comemoração dos mortos queridos tem lugar no Outono. Mais ainda: em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas, destacando a cada canto em rectângulos de papel vermelho, das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante, com as suas velas de esteira fantasmáticas, e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa. Quem estas linhas escreve teve, por várias vezes (há quantos anos isso vai!), deambulando pelo passeio da Solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoira que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira Alta, muito familiar à sua adolescência.
Ora a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico. Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo; e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis. Notáveis prosadores (basta lembrar, dentre os contemporâneos, Lafcádio Hearn, Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm celebrado condignamente os encantos dos países exóticos. Poeta, nenhum. Os poucos que vagueiam e se definham por longínquas regiões, se acaso escrevem em verso, é sempre para cantar a pátria ausente, para se enternecerem (os portugueses) ante as ruínas da antiga grandeza da pátria e, sobretudo para dar desafogo à irremediável tristeza que os punge. E se na reduzida obra poética colonial desses escritores – Tomaz Ribeiro, Alberto Osório de Castro, Fernando Leal (este último nascido na Índia, mas nem por isso menos exilado ali, português como era pelo sangue e pela educação) – se encontram dispersos alguns traços fulgurantes de exotismo, é só para tornar mais pungente pela evocação do meio hostil de inadequado pela sua estranheza à perfeita floração das almas – a impressão geral de tristeza – da irremissível tristeza de todos os exílios. Veio toda esta divagação a propósito de dizer que ainda é Macau a única terra de todo o ultramar português em que se pode ter até certo ponto a ilusão de se estar em Portugal, essencial ao exercício por portugueses da sua especial actividade imaginativa... Para concluir, contra toda a tradição e contra toda a evidência histórica que tenha sido escrita ou concebida em Macau uma parte considerável da vastíssima obra poética de Camões? Seria verdadeira loucura.
O génio de Camões, alimentado embora exclusivamente da seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história, das suas lendas, das suas crenças, da sua cultura científica e literária – tem pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis factores de perversão e de atrofia. As suas composições são datadas (indirectamente datadas) dos mais diversos pontos e dos mais inclementes climas – da África e da Ásia, por onde no século XVI se estendia o imenso império português e se despendia a exuberante energia da raça portuguesa. Muitas das obras primas do seu lirismo, das mais tipicamente nacionais pelo acentuado tom elegíaco de que estão impregnadas, brotaram na Índia do seu coração saudoso: e uma delas, das mais comoventes e das mais conhecidas, nasceu entre essa penedia sinistra da costa do Mar Vermelho, dessas nuas penedias incandescentes, que escaldam os pés de quem ali desembarca, e parecem, vistas a certa distância, formadas de escumalha de ferro.

Mas a terrível acção depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade criadora do poeta máximo, têm-no todavia, não só para esterilizar em cada um de nós outros, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua figura augusta. E, pois que Macau, não só pelas suas condições climáticas mas também como mais remoto padrão da acção portuguesa na Ásia, é o palmo de terra mais próprio para essa evocação se fazer, natural é que, à semelhança do que sucedia com os mais célebres santuários pagãos, situado cada um deles em terra ilustrada por algum episódio da vida da divindade a que era dedicado, seja em Macau o santuário nacional – pan-lusitano – consagrado ao génio do poeta, e que a Macau a biografia deste particularmente se refira. 
É a Gruta de Camões, com o seu cenário irremediavelmente mesquinho – mas suscetível, apesar disso, de correcção em muitos dos seus defeitos –, esse lugar sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem, há-de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte o seu poema imortal, e que o local predilecto aos devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então êrma, sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de "dólmen" em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido em bronze."
Macau, Junho de 1924

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