sexta-feira, 7 de junho de 2013

David Brookshaw, o tradutor para inglês da obra de Senna Fernandes

Um passeio por Macau colocou-lhe nas mãos “A Trança Feiticeira”, em 1996. A paixão foi imediata e a internacionalização da literatura de Macau ganhou novo fôlego.
Quando teve o primeiro contacto com a obra de Senna Fernandes?
De passagem por Macau, em 1996, comprei o romance “A Trança Feiticeira”. Depois, entre 1996 e 1999, li pela primeira vez os contos “Nam Van” e “Mong Há”, assim como “Amor e Dedinhos de Pé”. Isto aconteceu quando preparava um estudo sobre a literatura em Macau, publicado por uma editora anglo-americana em 2002, intitulado “Perceptions of China in Modern Portuguese Literature”.
A escrita do escritor macaense foi comparada à de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. Encontrou estas semelhanças?
Se isso quer dizer que a escrita de Senna Fernandes tem fortes ecos do romantismo e realismo do século XIX, estou inteiramente de acordo. É um ponto que levantei várias vezes em estudos que fiz sobre o autor.
Senna Fernandes escreveu muitos livros no início da idade adulta que acabaram por ficar pelo caminho. Seria aí um escritor diferente daquele que traduziu?
Sim. Mas mesmo quando lemos um conto como “A-Chan a Tancareira”, escrito em 1950 e, que se saiba, o primeiro exemplo da sua escrita a ser publicado, o tom e o tratamento da temática do amor é diferente em relação aos seus dois romances muito posteriores. Já para não mencionar a sua última obra, “A Noite Desceu em Dezembro”.
O autor afirmou que, numa conversa, alguém lhe admitiu que dificilmente poderia publicar um livro em Portugal, por não ser considerado um autor de língua portuguesa. Estamos perante um escritor dependente do contexto de Macau?
Todos os autores são, de certa forma, dependentes do contexto cultural e social em que escrevem. O que Senna Fernandes talvez quis dizer é que Portugal é mais aberto às literaturas africanas em português do que a uma literatura que tenta evocar a realidade de um espaço completamente desconhecido.
Ao ser traduzido para inglês, Senna Fernandes pode ganhar um espaço internacional, indo além da ideia de ser 'apenas' uma escritos macaense?
Sim. Sobretudo poderá ser lido pela diáspora macaense nos Estados Unidos, no Canadá ou na Austrália, que já não tem conhecimentos do português, assim como em cursos de literatura asiática em países anglófonos.
Ele escreveu sobre o amor e as mulheres. É sobretudo um autor romântico?
Sim, mas é preciso ver esse romantismo como fazendo parte de um projecto de expressar a identidade macaense.
Também traduziu os contos “Nam Van” e “Mong Ha”. Que diferenças encontrou em relação aos romances?
Em muitos dos contos, a temática é a mesma que nos romances. Em termos de tradução, não posso dizer que encontrei desafios específicos em relação aos contos.
Há projectos para continuar a trabalhar sobre a obra deste autor?
Acabei, há pouco tempo, um artigo sobre o autor para uma revista em Macau. Quanto a mais traduções, estou sempre interessado. “Amor e Dedinhos de Pé” merecia ser traduzido. A editora que publicou a tradução de “A Trança Feiticeira”, em 2004, ponderou a tradução do primeiro romance do autor, mas o projecto não foi adiante por razões que desconheço. É preciso não esquecer que é muito difícil colocar traduções de autores não anglófonos em editoras inglesas e norte-americanas.
Traduziu outros autores em Macau. Porquê a opção de trabalhar sobre a escrita deste território?
Traduzi uma selecção de contos de Deolinda da Conceição, Maria Ondina Braga e Fernanda Dias. Esses estão na antologia “Visions of China: Stories from Macau”, que publiquei quando andava a pesquisar a literatura de Macau. Essa antologia foi publicada nos Estados Unidos e pela Hong Kong University Press. O meu interesse pela literatura em
Macau originou a realização de que o orientalismo português tinha sido muito pouco estudado até então.
Isso alterou-se?
A situação mudou no inicio dos anos 2000, com a emergência de críticos universitários em Portugal, Brasil, Reino Unido, Estados Unidos e França, que começaram a interessar-se pela expressão literária como resultado do encontro luso-chinês e luso-indiano.
HSF numa fotografia de José Manuel Simões
Em 2010 deu uma palestra sobre a escrita de Macau. Considera-a uma literatura peculiar?
Sim, principalmente pelo carácter que o território assume como espaço multi-cultural, e pela sua história como empório comercial. Não se pode comparar a literatura ‘pós-colonial’ em Macau com as literaturas africanas em português (ou em outras línguas). Talvez seja mais produtivo pensar em literaturas surgidas em espaços semelhantes, como, por exemplo, Singapura ou Hong Kong, lugares essencialmente poliglotas e ligados ao mundo do comércio internacional.
Uma das suas áreas de estudo relaciona-se com a cultura desta região. A Macau de hoje, com os casinos, vai conseguir manter os seus traços originais?
Lembro-me de uma conversa entre o Mia Couto e a minha mulher, que como ele, nasceu e passou a primeira parte da sua vida na Beira, em Moçambique. Ele disse que se ela regressasse à Beira iria chorar por duas razões: primeiro porque tudo mudou, segundo porque nada mudou.
É o caso de Macau, portanto?
Isso acontece em todos os lugares, mesmo quando passaram por mudanças sociais e políticas cataclísmicas (que não é tanto o caso de Macau). Mesmo assim, em Macau, algo do património anterior vai manter-se, apesar dos casinos e do neo-liberalismo internacional. Mas é preciso que os interessados pelo património cultural lutem para a sua preservação e relevância para as novas gerações de macaenses e chineses do território.
(...)
Um inglês fascinado pela língua portuguesa
Muito antes do contacto com a obra de Senna Fernandes já David Brookshaw tinha um contacto forte com a literatura lusófona. Investigador e professor na área dos Estudos Luso-Brasileiros na Universidade de Bristol, diz que começou a sua carreira como “brasilianista”, mas a ligação ao idioma de Camões iniciou-se antes. “Morei três anos em Portugal nos anos 60 e o meu fascínio pela língua portuguesa data desses tempos.” Começou a ensinar em 1974, na Universidade de Queens, em Belfast, e chegou a Bristol em 1978. Além da obra de Senna Fernandes, David Brookshaw traduziu Mia Couto, Rodrigues Miguéis e Onésimo Almeida. O académico também traduziu poemas em português, não só em duas antologias de poesia de Macau, organizadas por Kit Kelen, como na obra “Portuguese Poets of Macau”.
Entrevista (excertos) de Andreia Sofia Silva. 
Hoje Macau, 14-2-2012

Sem comentários:

Enviar um comentário