sábado, 12 de abril de 2014

Macau na "Volta ao Mundo" de Ferreira de Castro

Em vésperas da Segunda Guerra Mundial Ferreira de Castro(1898-1974), um dos maiores nomes da literatura portuguesa do século XX, fez uma longa peregrinação por terras do Extremo Oriente acompanhado da mulher, Elena Muriel. Reuniu as crónicas do que viu e sentiu, incluindo Macau, no livro "A Volta ao Mundo", cuja publicação inicial é de 1944 e em fascículos. Muito do que viu (às palavras junte-se a profusão de fotografias e ilustrações) não seria mais o mesmo com o deflagrar do conflito e também por isso o seu testemunho é ímpar num diário de viagem escrito entre 1940 e 1944.
Inicialmente planeara ficar somente dois dias mas acaba por ficar duas semanas – pouco antes da invasão de Hong Kong pelos japoneses. Chegou a Hong Kong proveniente de Singapura, tendo viajado até Macau, de barco, numa viagem de cerca de 3 horas... para depois se hospedar no hotel Bela Vista.
 
On the eve of the Second World War, the author Ferreira de Castro and his wife, Elena Muriel, began their journey around the world to visit places that air bombs were soon to transform. They travelled to the cradles of civilisations, ancient and modern, in their humanistic quest to compare and assimilate all cultural differences. This was no lazy cruise to port cities as devised by some travel agency but rather a real adventure that involved twenty different ships and no guides or set departure times. The travel journal was four years in the writing and started to come out in instalments in 1944 with a large quantity of photographs and illustrations

“Passamos ao largo da foz do Rio da Pérola. Pouco depois, à nossa direita, levantam-se duas colinas, a primeira com um farol branco e uma ermida, a segunda com uma igreja. E entre estes dois guardiões dos navegantes espreguiça-se linda enseada. Pelas vertentes corre verde arvoredo e namoram-se níveas casitas. Antes mesmo de que alguém no-lo dissesse, compreendemos que estávamos em Macau. O estilo das casas, a sua brancura, a bucólica suavidade do conjunto, tudo, tudo lembrava certos trechos das províncias de Portugal, com a Senhora do Monte a servir de padroeira. Dir-se-á que os portugueses conseguiram modificar a própria paisagem asiática, as próprias árvores, dando-lhes expressão de terra minhota. Os ingleses chamam a Macau ‘colónia romântica e única’ e, efectivamente, visto do mar, lírico é o burgozito, que se destaca, pelo seu carácter lusitano, de todos os outros encontrados desde a ponta de Sagres ao Japão. Um oficial do navio, nascido em Macau, indica, orgulhoso, a primeira colina: ‘Acolá é o Farol da Guia, o mais velho que existe no Oriente, pois foram os portugueses que acenderam a primeira luz nas costas da China. E além, na segunda colina é a Senhora da Penha. Os primeiros navegadores ergueram ali uma capela, à qual sucedeu o templo actual’.
O vapor passa, lentamente, em frente da cidadezita, cada vez mais linda, contorna um dos esporões da terra e vai fundear no porto interior, espécie de canal entre a península de Macau e a ilha da Lapa, que emerge do outro lado. O ancoradoiro está pejado de sampãs e de juncos, alguns enormes, com as tripulações chinesas semi-nuas, cozinhando, comendo e lavando, numa imensa promiscuidade. À paisagem de Portugal longínquo sucedeu uma paisagem puramente chinesa. Estes juncos têm um ar remoto e parecem sobreviventes duma navegação já naufragada e perdida no mar dos tempos. Eles singram entre as ilhas, vão trafegar ao longe e, depois, com as suas velas de esparto, rotas esteiras, vêm recolher-se aqui, como num armazém, antes de abalarem novamente. Alguns, para evitar perseguições nipónicas, adoptaram a nacionalidade portuguesa e pintaram, no grande bojo, a bandeira lusitana. Há, também, pequenos navios chinos, da linha de Hong Kong e de Cantão, que recorreram, oportunamente, ao mesmo salvo-conduto para as águas onde domina o invasor.
O nosso barco, manobrando entre os juncos que enchem tudo, atraca, finalmente, à velha ponte de madeira. Não prevenimos ninguém sobre a hora e dia em que chegaríamos e não está ninguém à nossa espera. É um prazer enorme desembarcar em terra conhecida por leituras e não encontrar quem nos perturbe a volúpia de percorrer, a sós, a cidade que se trilha pela primeira vez. No porto de Macau não se exige passaporte, nem se abrem as malas. Após Gibraltar, também cidade franca, voltamos a sentir-nos novamente, ao cabo de meio mundo transitado, um forasteiro livre... Ninguém quer saber quem somos. Nos nossos dias, escravos de papéis de identidade, de carimbos, de vistos, de desconfianças, esta indiferença de Macau pela personalidade de cada qual talvez seja a sua principal virtude...
O cais está povoado de homens que conduzem, na extremidade de varas, largas tabuletas e bandeiras de reclamos. A língua portuguesa fraterniza com o idioma chino. Por cima dos caracteres do velho Celeste Império lê-se em caracteres latinos: ‘Curandeiro chinês, Fulano de Tal. Avenida Tal nº tal’. E, nas placas das lojas ribeirinhas, a mesma mistura de palavras e sinais alfabéticos. Quem reside em Portugal dificilmente imaginará o pitoresco desta união gráfica luso-chinesa.
Dirigimo-nos, mais tarde, ao Hotel da Bela Vista, que espairece junto da colina da Senhora da Penha. Ao subirmos as suas escadas, vamos interrogando, em português, a quantos empregados vemos. Mas nenhum deles sabe a nossa língua. Verificamos, depois, que em toda a Macau se passa, geralmente, a mesma coisa. Os chineses, quando aprendem outro idioma além do seu, é o inglês que aprendem, por ser o mais prático no Oriente inteiro. Se alguns destes simpáticos chinos do comércio e dos jirinxás se interessou, um dia, pela língua portuguesa, foi apenas para saber informar: - Senhô, é balato. Custa tantas patacas...
O velho hotel, onde residem muitos funcionários lusitanos, está sobranceiro ao mar. Tem uma larga varanda de pedra e, ao lado, frondosas árvores. Dele se vêem, em frente, algumas ilhas, à esquerda a colina do farol da Guia, mais abaixo a grande e rútila enseada, com a sua praia e seu branco casario. É um panorama fulgurante. Abrimos a janela do pobre quarto, tiramos o chapéu colonial e decidimos passar aqui duas semanas, em vez dos dois dias que tínhamos projectado. (...)
Ao crepúsculo, sentados na varanda, vemos os juncos volverem das suas derrotas diurnas sobre a água verde e tranquila. De grandes velas arcaicas, eles constituem a melhor decoração dos mares do Extremo-Oriente. E a esta hora vespertina tornam-se ainda mais grávidos de beleza e de mistério. Sem eles, sem as suas linhas de outrora e a sua sugestão de vida exótica, o Mar da China ficaria viúvo do seu principal encanto. Por baixo da varanda, pesca-se de modo primitivo, aqui como em todas as arribas chinesas. A rede não tem saco, nem labirinto algum. É uma simples malha quadrada, cujas quatro extremidades estão ligadas por bambus flexíveis, amarrados com cordas, a outro bambu mais forte e mais longo, que o pescador segura. Metida na água, recolhe o peixe que, porventura, sobre ela passe – e não consiga escapar-se enquanto o chinês a eleva. Algumas destas redes são fixas: a maré sobe e, ao baixar, deixa na ligeira concavidade da malha os peixes menos ladinos. (...)
Em frente da varanda, do outro lado da formosíssima toalha verde por onde deslizam os juncos, vê-se a ilha da Taipa, que, como a de Coloane, que se estende mais além, faz parte da colónia de Macau. Lá fomos encontrar alguns soldados e alguns funcionários civis lusitanos; alguns canhões, algumas pequenas igrejas e alguns pequenos edifícios públicos. Ilhas habitadas quase que somente por pescadores, os portugueses têm, todavia, procurado conquistar ao mar longos terrenos, para desenvolvimento da agricultura. Quase ninguém pensa, porém, nas outras terras da colónia quando se fala de Macau ou se visita Macau. Só a capital do ‘Fan-Tan’ açula a curiosidade.

A península de Macau, não obstante a sua pequenez, é formada por duas cidades completamente diferentes: a portuguesa e a nativa. A que se vê quando se arriba é a cidade lusitana. Uma longa avenida ribeirinha contorna a baía até às faldas da colina onde branqueja o farol da Guia. Copudas mangueiras ensombram o caminho e por entre os seus troncos se contemplam deslumbrantes marinhas. Do lado oposto, velhas casas, velhos solares, janelas e varandas de Portugal, numa atmosfera lusitana de outrora. As flores, as cores das paredes, as vidraças em guilhotina, até a soledade e um certo silêncio do sol nas casas lembram as antigas vilas portuguesas. As próprias ruelas que grimpam pelas declividades acusam a pitoresca toponímia dos burgos lusíadas dos séculos idos: Beco da Agulha, Travessa dos Algibebes, Forte do Bom Parto, Rua das Amas, Pátio da Canja, Travessa do Enleio, Travessa das Saudades, dezenas de outras com igual sabor popular. (...)
Macau ultrapassa em beleza natural quanto lhe havíamos creditado. Além disso, os portugueses, talvez por emulação com os seus vizinhos de Hong Kong, realizaram, nesta colónia, mais trabalhos de urbanismo do que têm feito em algumas cidades da própria metrópole”.
"O passado de Macau, é, todo ele, uma fantasia histórica de piratas. Um dia, há mais de quatrocentos anos, andavam os juncos pescando como hoje, surgiram, entre as ilhas, umas embarcações que também erguiam castelo à popa e ostentavam a cruz de Cristo sobre o velame enfunado. Elas deviam, como esses barcos que têm pintados, na proa, olhos de peixe, navegar cautelosamente, olhando a um lado e outro o mar e a terra desconhecidos. Eram os primeiros europeus que atingiam a China depois de Marco Pólo. Os piratas tomaram as naus por juncos de outros piratas, vindos de muito longe. E, por solidariedade de profissão ou por temerem luta com quem se fazia acompanhar de bombardas, deixaram-nos transitar. Os portugueses instalaram-se perto daqui, na ilha de San-Choan, onde devia morrer, mais tarde, S. Francisco Xavier. Com o tempo, outros lusitanos foram chegando, descobrindo as redondezas e remontando o próximo rio Pérola até Cantão. Os lusos vinham pelas riquezas da China e por espírito de revelação; e os piratas, esmoendo o caso, mudaram de atitude e desataram a guerreá-los, considerando-os rivais. Os homens dos juncos, hábeis em todas as abordagens, não se lançavam apenas contra os portuguese, mas também contra os próprios mandarins de Cantão. Dominando inteiramente estes sítios, eles eram senhores de todos os acessos à China do Sul. Então os ricos magnates chinos pediram aos portugueses auxílio para exterminar o inimigo comum. Tumba, tumba, três anos durou a luta, até que os juncos largaram à procura de abrigo em ilhas mais seguras. Por gratidão ao auxílio recebido, o imperador da China decidiu, nesse momento, brindar aos portugueses posse e vida livre duma minúscula península, onde, durante muito tempo, se haviam acoitado os salteadores marítimos. E foi assim que a Cidade do Nome de Deus de Macau veio a ser de Portugal”.
Excerto de "Volta ao Mundo" utilizado no livro de leitura do 2º ano dos Liceus
Agradecimentos: João Neves pela digitalização de algumas das imagens

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