sábado, 23 de agosto de 2014

A Galáxia Pessanha

Há poucos dias foi lançado o livro “Correspondência, Dedicatórias e Outros Textos : Camilo Pessanha”, [333 páginas] editado em parceria pela Biblioteca Nacional de Portugal/Universidade Estadual de Campinas , do Brasil, com a organização, prefácio, cronologia e notas de Daniel Pires.
Daniel Pires, antigo residente em Macau, professor e probo investigador com uma longa e honrosa folha de serviços dedicados à cultura portuguesa, recoloca Camilo Pessanha no centro de uma galáxia de problematizações estéticas , históricas, literárias e filosóficas. Vale a pena recordar que já tinha editado, entre outras, a “Homenagem a Camilo Pessanha”, em 1990, “Camilo Pessanha, Prosador e Tradutor”, 1992, “China: Estudos e Traduções”, 1993 , “Espólio de Camilo Pessanha”, 2008, ou a monumental obra “A Imagem e o Verbo: Fotobiografia de Camilo Pessanha”, de 2005. É, sem dúvida, um enamoramento antigo.
Na dedicatória a Ana de Castro Osório, aposta em Janeiro de 1916, no livro “Esboço Crítico da Civilização Chinesa”, de J.A. Morais Palha, cujo prefácio assinou, Camilo Pessanha escreve melancolicamente sobre essa “tumultuária farândula de imagens exóticas que desde há vinte e dois anos me tem enchido, nos confins do mundo, os olhos tristes de exilado”. Mais do que autobiográficas estas palavras podem ser uma das chaves para uma hermenêutica grande de sentidos, porque o verdadeiro sentido do mundo está, como dizia Wittgenstein, fora do mundo.
Pouco estimado, escassamente lido e arredado do mundo das leituras escolares, Camilo Pessanha reemerge com uma impressionante força estética na sinologia portuguesa do fim de século. Só um grande pensador dos costumes e da existência consegue sobreviver ao esmagamento do ‘pathos’ comunitário. A lucidez devastadora com que pensa uma realidade com energias depressivas, especialmente no circuito confidencial do mundo epistolar, vulnerabiliza-o porque inviabiliza a sua capacidade de resiliência perante a vida aberta, “distrair a atenção e fatigar o espírito” porque como dirá a Carlos Amaro, em 1909, de “Macau lhe direi a permanente dor surda da minha alma, dor quase adormecida enquanto os meus olhos se distraem, de dia, nos espectáculos em que vão repousando”. A comunidade interpretante é muito conservadora e movente, e no dizer de Habermas, segue sempre a autoridade da tradição. E Pessanha não deixa escapar o que realmente sente : “mantenho o mais impassível desdém pelos julgamentos da opinião pública (à qual até teria um certo gosto de vaidade em escandalizar, se a minha obscuridade mo não impedisse) – com tantíssimos bandalhos que tem nela voto de qualidade”.
Os textos inéditos e a arrumação da correspondência, sem esquecer a cronologia da sua vida e obra, permitem-nos escrutinar com mais segurança o quadro mental de Camilo Pessanha e o raro fulgor desta incompreendida inteligência em Macau. Daniel Pires refere que a “correspondência de Camilo Pessanha permite-nos ainda aferir a forma como perspectivava Macau. A sua vivência na cidade provocava-lhe sentimentos ambivalentes: por um lado, amplo prazer por usufruir da pluriforme cultura chinesa; por outro, desconforto e rejeição por se tratar de um meio ‘mesquinho’, conserva dor, claustrofóbico e ancilosado, propício à intriga e à maledicência”.
Numa carta endereçada a Carlos Amaro, em Março de 1912, Camilo Pessanha confidencia-lhe que “em quase vinte anos de Macau, fui-me adaptando ao meio, por um trabalho penível, embora em parte inconsciente, que me incapacitou para ser qualquer coisa fora daqui. São quase vinte anos de estudo, mais ou menos assíduo, da língua chinesa, dos costumes chineses, da arte chinesa. A língua, principalmente desde que cheguei aqui a última vez, há três anos, tenho-a estudado brutalmente, - no furor de me absorver no que fosse, para ver se conseguia distrair-me de tantas desgraças a que não posso dar remédio e que são a minha obsessão”. De resto, interroga-se, “escrita chinesa, poesia chinesa, arte chinesa, de que poderiam servir-me fora daqui?”, numa alusão clara ao enorme vazio cultural português sobre o Oriente e a China, não mencionando sequer os estudos sinológicos. Mas, não enjeitaria uma aventura escolar fora do perímetro de Macau, “consta-me, finalmente, que vão ser criadas cadeiras de português em Xangai e Hong-Kong. Aceitaria ainda, em última extremidade a de Xangai, desde que fosse sofrivelmente paga e me deixasse tempo para advogar perante o consulado, que como naturalmente sabe, é também tribunal para os residentes de nacionalidade portuguesa, que ali são em grande número, macaístas e chineses oriundos de Macau”.
O “Relatório sobre a actividade pedagógica das Irmãs Canossianas”, redigido por uma comissão que integrava Camilo Pessanha, Eduardo Cirilo Lourenço e Fernando Celle de Meneses, tem um alto valor simbólico porque nos revela a forma, umas vezes subtil e outras vezes mais à bruta, como o recém formado estado republicano, em Macau, se assenhoreou da vertente providencialista e assistencialista até então cometida aos organismos religiosos. Não menosprezando o contributo dos outros dois membros, é identificável, no documento, a estrutura argumentativa da racionalidade de Pessanha. Estes dois textos já estavam sinalizados para integrar o quarto volume dos “Documentos para a História da Educação em Macau” (os outros três volumes foram editados entre 1996 e 1998, pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude), que infelizmente não chegou a sair.
Foto de 1915 em Macau
Mas a verdadeira novidade é a transcrição da acta de uma sessão secreta do Conselho de Governo, no dia 23 de Junho de 1904. Para além do Governador Martinho de Montenegro, estiveram presentes o Bispo de Macau, D. João Paulino de Azevedo e Castro, o Juíz de Direito substituto, Camilo Pessanha, o capitão-de-mar-e-guerra Albano Branco, o tenente-coronel Francisco Santana, Alfredo Lello, Luís Gonçalves Forte, Olímpio de Oliveira, Eduardo Marques e José Gomes da Silva.
Mas o que tinha motivado essa sessão secreta? “O Vice-Rei de Cantão tinha pedido há tempos ao Governo provincial a captura e, em seguida, a extradição do mandarim Pui-Keng-Fôc”. Camilo Pessanha declarou-se desassombradamente contra a extradição, “apaixonadamente hostil à concessão das extradições pedidas pela China, as quais entende deverem dificultar-se quanto possível”. Todos os outros vogais do Conselho de Governo votaram favoravelmente o pedido de extradição, incluindo o Bispo de Macau, “Ministro de uma religião de amor”, porque pesou mais a estratégia política regional para a sobrevivência do Território do que verdadeiramente a defesa dos direitos humanos, que se consubstanciavam na vida do mandarim.
Já tinha publicado esta história no antigo semanário “Tribuna de Macau”, em 1995, (sem suspeitar da acta secreta e da intervenção de Camilo Pessanha), porque ela se tinha transformado num pequeno incidente internacional. O mandarim opiómano tinha sido posto a ferros na Fortaleza do Monte e depois extraditado, com a soleníssima promessa de não ser maltratado ou condenado à morte. Pouco tempo passado após a extradição, um jornal inglês da colónia vizinha, o ‘Hongkong Telegraph’ noticiava a execução sumária do mandarim e invectivava os portugueses por não respeitarem os tratados e o direito internacional. A reacção do governo de Macau, lê-se na correspondência oficial, foi “enérgica”, “indignada” e “muito dura”. Camilo Pessanha ficou com a sua reputação ainda mais em alta e Macau com água e víveres, que deixaria de ter se não tivesse havido a extradição. Por estas e por outras, Pessanha lançou este anátema , “aquilo não é uma colónia, nem é uma cidade; é uma montureira, material e moral”.
Deixo um desafio a Daniel Pires, a reedição em fac-símile de “Kuok Man Kau Fo Shu” de José Vicente Jorge e Camilo Pessanha. Era outra cereja em cima do bolo! Não obstante o caminho já percorrido, ainda estamos longe de conhecer a galáxia Pessanha.
Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 15.02.2013

1 comentário:

  1. Adoro Camilo Pessanha... embora as relações entre ele e o meu bisavô não fossem as mais cordiais, eram seres humanos completamente diferentes.
    Na minha opinião Camilo Pessanha era um homem extremamente sensível, aquilo que eu chamo gente da arte, quem tem alma de artista é um sofredor e muito incompreendido. Esse livro “Kuok Man Kau Fo Shu” de José Vicente Jorge e Camilo Pessanha já o procuro há anos, sei que ele existe na biblioteca de Macau e aqui no Porto perdi-o uma vez por achar muito caro (é considerado livro raro, nem sequer o consegui ver porque foi logo vendido) no alfarrabista Manuel Ferreira.
    Resta-me a esperança de vir a ser reeditado ou numa viagem a Macau conseguir ver o seu conteúdo, reconheço que ambas as coisas são os poucos sonhos que me faltam realizar... ah! também a possibilidade de ver publicada a Fotobiografia do meu bisavô mas essa parece estar a caminho.
    Quanto ao livro que se refere vou tentar saber a possibilidade de o adquirir, bem haja sempre pelas suas notícias meus cumprimentos Maria dos Anjos Mendes

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