quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O "velho" ano novo chinês: 1ª parte

“O facto de a República haver instituído o calendário gregoriano não implicava necessariamente o esquecimento do velho Ano Novo chinês. Vivazes tradições, enraizadas no íntimo dos Celestes, estão ligadas àquela data, pilar que fixa o princípio das maiores festividades nacionais e o único período de férias que eles se permitem. Não havia de ser com a publicação de uma lei que o povo, que a nação em peso abandonaria a série de superstições e de formalidades extravagantes que, na sua mente, desempenham o maior dos papéis na vida e felicidade familiares, para adoptar um processo original de contagem do tempo, desprovido de vantagens evidentes, imediatas, obra dos bárbaros do Ocidente.
Necessário é relembrar que, mesmo depois de os astrónomos chineses estarem a par dos progressos da ciência astronómica europeia, quando se aproximava o momento de um eclipse, os mais altos funcionários do observatório, tal como o povo nas ruas, reuniam-se e tocavam com desespero em bombos, pratos de metal, nos mais extraordinários instrumentos, a fim de afugentar o dragão maléfico que diligenciava devorar o Sol ou a Lua!
A quietude e silêncio da cidade são estrepitosamente interrompidos nesse período festivo. Durante 10 dias, com fragor, os Celestes entregam-se, de alma e coração, à comemoração da maior data do seu calendário. A sobriedade, compostura de maneiras, espírito de economia, desapareceram para dar lugar a um estado anormal, traduzido em manifestações de mil espécies, que vão desde o simbolismo tranquilo de queimar incenso em honra dos espíritos, ao lançamento ininterrupto de petardos, estrondeando, incessantes, em horas infindáveis de martírio, sem consentir um instante de alívio.
Nos jardins, nos pátios, nas ruas, em todo Pequim, fogos de artifício, vistosos, fantásticos, deslumbram a retina e explicam o fim modesto atribuído pelos chineses à pólvora, a qual unicamente se transformaria em artigo destruidor graças aos ensinamentos dos jesuítas; nas lojas, grandes ou pequenas, ricas ou pobres, o pessoal reúne-se numa das salas e organiza uma orquestra infernal, em que as notas doces dos violinos morrem sufocadas pelos sons monstruosos tirados dos bombos tocados com força destruidora a ensurdecer o transeunte…
Dez dias antes do Ano Novo, o prólogo, a bem dizer, da sua grande revista inaugura-se quando, pela meia-noite, no meio de aclamações, o Deus da Cozinha é trazido para a rua e queimado. Então, o seu espírito sobe aos céus e dá conta ao Criador dos actos da família em que viveu. Para que o deus agradecido só repita coisas agradáveis ou com o propósito de que fale pouco por ter a boca pegajosa, antes da largada para a grande viagem servem-se bolos adocicados em que o mel predomina. Entretanto, os preparativos vão num crescendo: as limpezas e lavagens das casas, dos móveis, acompanham a higiene individual, que é escrupulosamente cuidada por esta ocasião. As habitações e as gentes sofrem uma renovação completa, tendente a transformá-las de molde a apresentarem-se dignas das venturas e benéficas influências de que o Ano Novo será quiçá o mensageiro.
Em consideração aos numerosos amigos que costumam acorrer nos primeiros dias de festa para cumprimentar e exprimir votos de prosperidade, os mais variados e abundantes manjares – não esquecendo o Chu po po, bolos de carne – foram com antecedência preparados, em virtude do descanso obrigatório que se segue e que, à uma, sem discrepância, é acatado. É uma azáfama constante, barulhenta, uma agitação que revolve a casa em todos os sentidos e faz perder a habitual tranquilidade e paz de alma dos Celestes…" (continua)
Excerto do livro "China de Ontem - China de Sempre", da autoria de L.Esteves Fernandes, antigo Encarregado de Negócios em Pequim e Ministro no Japão", editado em 1948 pela Empresa Nacional de Publicidade.

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