segunda-feira, 24 de abril de 2017

Um "erro" com quase 40 anos

Num artigo publicado na edição do Diário de Notícias de 29 Agosto 2014 sobre a transferência de Macau para a RPC em 20 de Dezembro de 1999, vem escrito que "em 1974, logo depois do 25 de Abril Portugal propusera o retorno imediato de Macau à China. Mas Pequim rejeitou a oferta, apelando às negociações para uma transferência harmoniosa".
O assunto mereceu resposta do então governador (de Nov. de 1974 a Fev. de 1979) Garcia Leandro. "Há quase 40 anos que tento esclarecer o que se passou, sem sucesso e sem correcções de erros feitos no passado. Ora a História não pode ser feita com esta leviandade". Garcia Leandro garante que "dentro do que conheço, tal não aconteceu, feito por alguém em nome de Portugal."
Em cima: Garcia Leandro enquanto governador de Macau fotografado no seu gabinete no Palácio da Praia Grande; em baixo em 1976, na AL de Macau em 1976. foto publicada na Revista Macau.

Artigo publicado no jornal Ponto Final de 26.09.2014 da autoria de João Paulo Menezes

Não fosse Garcia Leandro teimoso e o assunto provavelmente já teria sido esquecido. Mas esquecido não significa esclarecido – e é isso que
o antigo governador de Macau tem tentado fazer ao longo dos anos, não desperdiçando as oportunidades para contestar uma versão que foi amplamente difundida na segunda metade da década de 70 do século passado: que ele, em nome de Portugal ofereceu (por mais do que uma vez), a devolução de Macau à China.
Esclarecer e desmentir esta versão foi, aliás, um dos propósitos de Garcia Leandro quando publicou o seu livro de memórias macaenses (“Macau nos Anos da Revolução Portuguesa 1974-1979”).
O general conta mesmo que confrontou o professor Sonny Lo, quando este esteve em Lisboa, e que Sonny Lo reconheceu que não tinha provas do que escreveu em pelo menos duas obras: “Aspects of Political Development in Macao” (The China Quarterly, n.º 120) e “Political Development in Macau” (The Chinese University Press, 1995).
O que é que escreveu Sonny Lo? Que “Portugal offered to return Macao to China three times between 1974 and 1977”, frase que foi depois citada por Moisés Silva Fernandes.
O que o professor Sonny Lo disse, em Maio de 2009, no Centro Científico e Cultural, foi: a ter sido verdade que Portugal ofereceu Macau à China no âmbito das Nações Unidas, isso aconteceu apenas numa base informal.
O PONTO FINAL contactou o professor Sonny Lo para tentar esclarecer melhor esta questão e o investigador reafirmou a falta de provas, mas introduzindo uma cambiante: a sua fonte de informação foi outro académico de Hong Kong, Hungdah Chiu, que o escreveu na publicação “Introduction,” in Hungdah Chiu et al, “The Future of Hong Kong” (New York: Quorum Books, 1987), p. 8.
Sonny Lo assume poder estar errado, já que não tinha informações sobre as negociações entre Portugal e a China e não tem provas de que assim tenha acontecido, insistindo na hipótese de uma proposta meramente verbal.
Infelizmente não foi possível obter outras informações por parte de Hungdah Chiu, que morreu em Abril de 2011. Ainda antes dessa data foi contactado igualmente pelo PONTO FINAL, mas há muito que já não era possível obter informações, por motivos de saúde.
Os esforços de Garcia Leandro encontraram, ao longo destes anos, uma enorme adversidade: uma notícia do New York Times, com data de 1 de Abril de 1975, garante que foi o próprio a fazer essa oferta, no dia 10 de Junho do ano anterior, a Ho Yin (pai de Edmund Ho).
Embora as notícias (e os desmentidos…) sobre a hipotética devolução de Macau tenham começado logo a 1 de Junho de 1974, com uma noticia de primeira pagina do Hong Kong Standard, foi essa noticia do jornal norte-americano que mudou a forma como o processo decorreu.
Face à noticia assinada por David Binder, o então Governador de Macau não esteve de modas: disse que só podia ser uma “brincadeira do Primeiro de Abril”. Ho Yin apoiou-o, desmentindo que alguma vez tivesse proposto a entrega de Macau. E Almeida Santos considerou o artigo do NYT uma “mentira” e “especulação mal intencionada”, que tinha em vista atrapalhar os esforços de Lisboa no processo de descolonização em África, segundo escrevia Ricardo Pinto no PONTO FINAL em 2009.
Como afirma Moisés Silva Fernandes (“Contextualização das negociações de Paris sobre a normalização das relações luso-chinesas 1974-1979”, 2010), “apesar dos categóricos desmentidos do ministro Almeida Santos, da Administração portuguesa de Macau e do Governador Garcia Leandro, a versão do New York Times foi aquela que acabou por prevalecer nos meios académicos ocidentais e chineses”. O historiador português elenca aliás, neste artigo, a lista dos vários autores que ao longo das décadas seguintes insistiram na ideia da entrega (ver texto nestas páginas).
Duas conclusões parecem claras nesta altura: que a proposta, mesmo informal, chegou aos ouvidos chineses mas que não foi feita por um responsável político português, e portanto não tinha valor oficial (o que descarta Garcia Leandro).
Mas, então, quem o fez?
Todos os caminhos vão dar ao representante do Movimento das Forças Armadas em Macau, no momento da Revolução de 1974, capitão-tenente Augusto António Catarino Salgado, principal rosto da oposição à continuidade de Nobre de Carvalho como Governador e destituído de funções por Garcia Leandro, quando este sucedeu a Nobre de Carvalho.
O comandante naval Catarino foi um dos fundadores da CDM, a primeira associação cívica criada em Macau e era visto como o líder da facção mais revolucionária dos militares colocados em Macau.
O papel de Catarino Salgado no período de 1974/75 em Macau não está bem estudado, até pela indisponibilidade deste militar da Marinha para o esclarecer. Mas um dos raros historiadores que com ele falou, garante ao PONTO FINAL que sim, que Catarino Salgado fez essa proposta em Macau.
O académico em causa é Josep Sánchez Cervelló, autor do importante livro “A Revolução Portuguesa e a Sua Influência na Transição Espanhola”, que entrevistou Catarino Salgado.
Ao PONTO FINAL, o decano da Universitat Rovira i Virgili na Catalunha garante que foi o “primeiro a falar desta questão na minha tese de doutoramento”, revelando que no Arquivo Militar de Lisboa “há uma gravação que fiz ao comandante Catarino Salgado em 8 de Junho de 1986, que fala nisso. De todas as entrevistas que fiz durante dois anos deixei lá uma cópia”.
Catarino Salgado morreu há seis meses e com ele alguns dos factos que seriam importantes para compreender o que se passou. Outro camarada de armas de Catarino Salgado em Macau, o comandante Guerra da Mata, também já faleceu.
No seu livro ” A Revolução Portuguesa e a Sua Influência na Transição Espanhola”, Cervelló refere um documento do MFA, de Setembro de 1974, em que a entrega de Macau à China era um dos dois cenários apontados. Não só esse documento tem sido ignorado pelos investigadores, como um outro facto relatado por Cervelló nunca mereceu a devida atenção: Catarino Salgado contou-lhe que “veio incógnito um representante chinês, nós soubemos e tentámos falar com ele, e ao cabo de inúmeras perífrases conseguimos arrancar-lhe a seguinte resposta: ‘se nós quiséssemos irmo-nos embora, que fossemos, mas por que queríamos partir se estávamos ali há quatrocentos anos'”.
Mesmo que todos os caminhos apontem para Catarino Salgado, parece difícil que alguma vez o assunto venha a ser completamente esclarecido, por falta de interesse de quem tinha obrigação de investigar a história. Garcia Leandro continuará a dar o seu contributo, como aconteceu com um texto que enviou recentemente para o Provedor dos Leitores do Diário de Notícias, mas será caso para dizer que um erro (ou vários, se considerarmos o protagonista, o local e mesmo as datas) muitas vezes repetido, ainda por cima por académicos prestigiados, que se basearam muitas vezes em notícias de jornais, se transforma em verdade.
Uma história mal construída?
Moisés Silva Fernandes (“Contextualização das negociações de Paris sobre a normalização das relações luso-chinesas 1974-1979», 2010, pág 59) inventariou a lista dos académicos que se agarram à tese do New York Times:
– James C. Hsiung defendeu num artigo publicado numa revista científica que “[h]aving first declined Portugal’s offer to return Macao in 1974, Peking then signed an agreement the following year that allowed Portugal to continue to retain the enclave after nominally surrending its sovereignty back to China (p. 47).
– Baseado no mesmo artigo, Zhiduan Deng asseverou num capítulo de um livro que “[i]n 1974 Portugal offered to return Macao to Beijing. This was declined by the Chinese leaders. In the following year, Beijing signed an agreement with Lisbon allowing Portugal to continue its rule over Macao” (p. 292).
– Hungdah Chiu, por seu turno, argumentou, baseando se num despacho da agência noticiosa norte americana Associated Press. proveniente de Lisboa e publicado no diário The Sun, de Baltimore, em 2 de Fevereiro de 1977, que “the PRC had rejected the Portuguese offer to return Macao to China three times” (p. 8).
– Norman MacQueen argumentou que “[a] report at the end of March 1975, purportedly from western diplomatic sources, suggested that Peking had been asked directly to accept Portuguese withdrawal and had firmly refused to do so” (p. 168),
– Sonny Lo Shiu hing defendeu que “Portugal offered to return Macao to China three times between 1974 and 1977” (1989, p. 841).
– Finalmente, Julian Weiss afirmou que “Portugal tried twice – in 1967 and 1974 – to turn Macao over to China but the Chinese refused for a variety of strategic reasons” (p. 190).
O que se deduz desta lista, que não é exaustiva, já que outros autores (sobretudo com origem em Hong Kong) repetem sistematicamente a mesma informação, é que nenhum cita uma fonte primária (documento escrito, depoimento, etc.), essencial para a construção da história, já que isso demonstra um conhecimento pessoal directo dos factos. Todos se limitam a fontes secundárias, sendo que, ainda por cima, algumas das fontes primárias ainda se encontram vivas. A começar por Garcia Leandro.

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