domingo, 3 de dezembro de 2017

Quando Macau mudou para que tudo ficasse na mesma

No dia 3 de Dezembro de 1966, com os ventos da revolução cultural chinesa a soprarem fortes em Macau, uma multidão amotinada atacou vários símbolos da administração portuguesa, incluindo o Palácio do Governo e o Leal Senado.
Foi o culminar de um período de tensão que começou com um incidente relacionado com as obras numa escola da Associação dos Estaleiros da Ilha da Taipa.
Em 2016 a Rádio Macau emitiu uma reportagem da autoria do jornalista Hugo Pinto, na qual se recordam os tumultos e também o que esteve por detrás de toda a agitação. O texto que se segue é uma adaptação do guião da reportagem.
Aqui no blogue existem vários posts sobre o tema; basta utilizar o campo de pesquisa (no topo à esquerda) e/ou a etiqueta "eventos1966" (em baixo à direita).
Esta é uma história de ideias radicais, de duas visões extremas do mundo, de como se confrontaram e de como foram usadas para atingir objectivos não declarados. É uma história de como a radicalização do discurso foi alimentada para construir uma narrativa e conduzir a uma acção. É a história de quando os extremos se opuseram e, em Macau, alguma coisa teve de mudar, para que tudo ficasse na mesma.
A antecâmara
“Eu estava a jantar quando ouvi um barulho enorme. Já sabia um bocadinho de chinês. Cheguei à janela e vi um grupo enorme, que tinha vindo do lado do Hospital Kiang Wu, para baixo, com bandeiras, a ofender os portugueses. Dirigiam-se aqui para a Avenida Almeida Ribeiro, nessa noite, no dia 1. No dia 2, fui trabalhar. Quando fui comprar um maço de cigarros, a vendedora diz que não vendia cigarros a portugueses. Quando saí do serviço e fui apanhar o autocarro para casa, a revisora disse-me que ia deixar-me entrar, mas que, no dia seguinte, não, porque era proibido os portugueses usarem os transportes públicos”.
Há 50 anos, nos primeiros dias de Dezembro de 1966, António Cambeta testemunhou o que pouco antes parecia impensável em Macau.
A população chinesa, desde sempre maioritária na então colónia portuguesa, revoltava-se contra as autoridades. Não era a primeira vez, mas já tinham passado mais de quatro décadas desde a última grande revolta. E agora sopravam da China os ventos da revolução cultural. Uma onda vermelha ameaçava cobrir o país e Macau não escapava. “1,2,3”. Foi assim, numa alusão à data (o dia 3 do mês 12), que ficaram conhecidos os acontecimentos que culminaram um período invulgarmente tumultuoso, que começou a 15 de Novembro.
Na manhã desse dia, cerca de uma centena de jovens começam a montar andaimes e a destelhar três velhas casas na Taipa, na Rua Direita Carlos Eugénio. Ali ao lado pretendia-se construir uma escola primária para os sócios da Associação dos Estaleiros da Ilha da Taipa. Num relatório secreto, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), haveria de escrever que “os comunistas requereram licença para construir uma escola há cerca de oito meses”, mas o pedido ficara esquecido na gaveta. O administrador do Concelho das Ilhas, Rui de Andrade, assistiu à demolição quando passava de carro. Intrigado, enviou polícias ao local. Foram mal recebidos e os desacatos não tardaram, resultando em dois feridos e seis chineses detidos. Entre a comunidade e na imprensa de língua chinesa falava-se em 40 feridos.
Eram falsidades, acusa Moisés Silva Fernandes na obra “Macau na Política Externa Chinesa entre 1949 e 1979”, onde o investigador da Universidade de Lisboa aprofunda o período do “1,2,3”. O académico escreve que o objectivo, traçado pela chamada “elite chinesa”, era provocar uma reacção: em Macau, mas também na China. Era dessa forma que as figuras proeminentes da sociedade chinesa de Macau procuravam legitimar-se perante a liderança comunista. Tinha sido há poucos meses que Mao Tse-tung lançara o país na Revolução Cultural. Na China, estava em curso uma campanha de purificação de todas as esferas da cultura, da política e da sociedade.
Ninguém estava a salvo. Nem o presidente, Liu Shaoqi, que chegou a ser acusado de contra-revolucionário. Algo tinha mudado no outro lado da fronteira, onde as autoridades portuguesas não costumavam ver motivos de preocupação.
Num dos discursos que proferira, Lopes dos Santos, que governou Macau entre Abril de 1962 e Novembro de 1966, afirma que Portugal tinha “uma tradição de paz e amizade (...) sem nunca ter feito a guerra, como o próprio Mao reconhece”.
Em Novembro de 1966, Lopes dos Santos pediu a exoneração alegando motivos familiares. Salazar nomeou como sucessor Nobre de Carvalho, que foi posto ao corrente do que se passava na China com a revolução cultural, mas não em Macau. O novo governador só chegaria a Oriente no dia 25 de Novembro. Até lá, Mota Cerveira seria o encarregado do Executivo. Coube a este comandante militar liderar as primeiras negociações após o incidente da Taipa. A Mota Cerveira os chineses reclamaram uma indemnização para as vítimas da carga policial e a demissão do segundo-comandante da PSP e do administrador do Concelho da Ilhas.
As negociações ainda decorriam quando Nobre de Carvalho chegou a Hong Kong sem saber que se passava em Macau, como confessou o ex-governador ao jornalista Ricardo Pinto, numa reportagem para a TDM, em 1996: “O governador foi daqui [de Lisboa] sem saber o que se estava a passar em Macau. Vim a saber que estavam tendo lugar acontecimentos sérios pelo governador de Hong Kong, quando me foi receber no aeroporto de Kai Tak, e me fez saber que a situação era preocupante”.
Em Macau, Nobre de Carvalho rapidamente mergulhou nos problemas em que o território se afundara. Face à recusa de ceder às exigências chinesas, a imprensa, com o diário Ou Mun à cabeça, intensificava a campanha de ataques contra a administração portuguesa. Os guardas-vermelhos começavam a marchar pela cidade.
Reivindicação sobe de tom
Em Macau há dois anos, onde cumprira o serviço militar, António Cambeta, então funcionário numa agência comercial, olha para trás e recorda que havia entre a comunidade chinesa um mal-estar que, de repente, transbordara: “Havia dentro da população chinesa um rancor acumulado ao longo dos anos, porque a administração portuguesa era toda corrupta e tratava mal os chineses. Não havia chineses em postos de comando. Nunca houve, quase até à entrega de Macau à China. Para tratar qualquer assunto, em qualquer departamento público, era tudo à base de dinheiro. Os chineses já estavam cheios. Aproveitaram a circunstância da revolução cultural na China para dar a volta ao sistema”.
Com o passar do temo, o tom ia subindo. As exigências aumentavam. Não bastavam já as duas demissões, nem as compensações monetárias. Era preciso também apresentar um pedido de desculpas ao jornal Ou Mun, acusado de agitador, e ainda tirar os cassetetes aos polícias. A administração portuguesa tinha também de reconhecer publicamente os erros cometidos a partir de 15 de Novembro. Mas a pressão começou a chegar também de Hong Kong, através da agência de notícias oficial chinesa, a Xinhua. Tudo em crescendo até ao dia 3 de Dezembro, quando o átrio do Palácio do Governo foi invadido. No exterior juntavam-se já centenas de manifestantes. Jovens, na maioria. A polícia carrega. Jactos de água e gás lacrimogéneo são lançados sobre a multidão, que, entretanto, se concentra junto ao tribunal, na Praia Grande, e também no Leal Senado. Sem resistência, a então Câmara Municipal foi invadida e saqueada, bem como a secretaria notarial, ao lado da Farmácia Popular.
Eduardo Tavares, seminarista em 1966, recorda o momento em que o padre Manuel Teixeira, historiador e então membro da comissão para o restauro dos códices rasgados, acorreu ao Leal Senado: “Estava num dos corredores do Seminário de São José e ele [padre Teixeira] desce as escadas do terceiro para o segundo andar, assim muito apressado. Perguntei-lhe, ‘então senhor padre, onde é que vai?’ E diz, ‘ó rapaz, cala-te, vou salvar Macau.’ Porque é que ele diz isso? Porque houve exageros e um dos exageros foi ir ao Leal Senado e deitar as coisas para a rua, livros e outras coisas. Outro foi ir ao cartório notarial e também muitas coisas voaram. E então ele diz que foi salvar aquilo. E parece que foi, que ainda apanhou muita coisa”.
Para o padre Teixeira, aquele tinha sido o pior golpe que o arquivo sofrera. O historiador estimou que um terço dos manuscritos estavam perdidos. Passados 50 anos, o agora ex-padre Eduardo Tavares recorda que, na altura, era difícil não perceber que algo estava mal em Macau, mesmo com a protecção dos superiores, que não queriam os noviços alarmados pela tensão: “A gente ouviu durante aquele ano de 1966, até Julho de 1967, os altifalantes em muitas partes da cidade, com ‘slogans’ contra portugueses, americanos, estrangeiros. Havia ali uma certa xenofobia”.
Um dos símbolos detestados do colonialismo estava no centro do Leal Senado. Era a estátua do herói macaense da batalha do Forte de Passaleão, o coronel Nicolau Mesquita.
A 3 de Dezembro de 1966, a estátua foi derrubada e arrastada para a casa de banho pública da Almeida Ribeiro. “Aqui é o teu lugar”, escreveram. António Cambeta afirma ter visto a estátua ser deitada abaixo por “chineses indonésios”. Também Moisés Silva Fernandes destaca que os “chineses ultramarinos da Indonésia foram instrumentalizados para precipitarem os distúrbios em Macau”. No dia 3, a força da autoridade sentiu-se com maior impacto quando a turba se aproximou do comando da PSP, na Rua Central. Já com os militares nas ruas, abre-se fogo contra a multidão, que começa a dispersar.
O governador impõe o recolher obrigatório.
Depois de, no dia 3, os manifestantes terem atacado os símbolos da administração portuguesa, no dia seguinte foi a vez de os alvos terem sido as instituições ligadas a Taiwan – associações e grupos de apoio a refugiados da República Popular da China.
Como acontecera antes, também desta vez os incidentes foram descritos por vários jornalistas, tanto chineses como ocidentais, como tendo sido organizados, nota Moisés Silva Fernandes. Ainda no dia 4 é feito o balanço dos incidentes: três mortos no dia 3 e cinco no dia seguinte. No total, oito mortos, todos chineses: um operário, um comerciante, um empregado, dois aprendizes e três alunos. Feridos terão sido mais de 200. A violência iria desaparecer das ruas de Macau, mas o mal já estava feito. Ao longo dos anos foram feitas críticas à actuação das forças de segurança – ora pela brutalidade, ora por não terem sabido actuar no tempo certo. António Cambeta, que iria integrar as forças de segurança, garante que havia “falta de preparação”, quer por parte dos polícias, quer por parte das tropas.
Manobras de bastidores
Depois dos incidentes, a necessidade de encontrar um desfecho para a crise levou a que a elite chinesa tivesse criado, com o apoio de Pequim, a Comissão de Luta Contra a Perseguição Portuguesa. Era a chamada “comissão dos 13”, que concertava as posições alinhadas com a China continental para negociar com o governador Nobre de Carvalho. Começavam novas manobras de bastidores.
Em fundo, um ambiente tenso e ameaçador, recorda António Cambeta: “Havia receio. Macau estava bloqueado. Havia navios chineses a controlar toda a área marítima de Macau”. Havia receio entre a comunidade portuguesa, mas também chinesa, acrescenta Cambeta: “A comunidade chinesa estava dividida em várias partes. Aqueles que sabiam a realidade da China tinham receio daquilo que os comunistas pudessem fazer, porque revolução cultural é uma coisa e o Partido Comunista Chinês, até ali, nunca tinha sido hostil para com Macau, antes pelo contrário. Precisava de Macau como contraponto de entrada e saída de mercadorias. O receio que havia era da revolução cultural. A maioria era malta nova, estudantes com outra mentalidade. Se viessem invadir Macau, o que aconteceria aqui? Os próprios habitantes chineses de Macau estavam divididos”.
Hoje, António Cambeta diz que o sentimento de há 50 anos teria ressonâncias quando Macau passou a ser administrada pela China. Era a incerteza. “O sentimento”, diz, “era quase igual”. Se nos anos 1990, a população de Macau vivia com a guerra das seitas nas ruas, nos anos 1960 eram outras as facções que também se digladiavam. Em 1966, assistiu-se ao maior agravamento do conflito entre comunistas e nacionalistas, os dois lados que tinham estendido até Macau a luta travada na clandestinidade. Exilados em Taiwan, os nacionalistas tinham na antiga colónia portuguesa uma importante base de apoio e liberdade de movimentos. Mas os comunistas, em Pequim, estavam atentos e seguiam de perto o que se passava. Salazar recusava dialogar com os comunistas, que considerava o grande inimigo. Devido à ausência de relações diplomáticas entre Portugal e a China, entre 1949 e 1979, as funções de mediação entre as duas partes foram desempenhadas pela chamada elite chinesa de Macau. Desde a chegada dos portugueses, em 1555, as autoridades chinesas usaram mandarins para gerirem Macau e contactarem com a administração portuguesa. O arranjo só foi desfeito em 1849, quando o governador Ferreira do Amaral expulsou as autoridades chinesas de Macau. Desde então, era à elite comercial chinesa do enclave que cabia a mediação. A partir de 1949, com a instalação no poder por parte dos comunistas, a elite chinesa volta a assumir um maior destaque. Em Macau, a elite chinesa controlava associações e escolas, recebia títulos honoríficos de Pequim e de Lisboa, e acumulava dinheiro e poder com as concessões, sobretudo do jogo e do ouro.
O metal mais precioso
A neutralidade de Portugal na Segunda Guerra Mundial deixou Macau de fora do conflito e também do acordo Bretton Woods, assinado com o objectivo de apertar o controlo sobre o preço do ouro no mercado global. Rapidamente, Macau tornou-se uma praça mundial do metal precioso. Entre 1949 e 1969, foram importadas para Macau 900 toneladas de ouro. Não há registos oficiais de terem saído do território, mas é de presumir que os lingotes tenham ido parar sobretudo a Hong Kong, onde terão sido revendidos. Caso contrário, como escreveu o investigador João de Pina-Cabral, as ruas de Macau estariam pavimentadas a ouro.
Desde o final da década de 1940 que o ouro era controlado por um consórcio formado por Pedro Lobo, chefe dos Serviços Económicos de Macau, e pelos empresários chineses YC Liang, e Ho Yin. Eram dois destacados membros da elite chinesa, composta pelos chamados “capitalistas compatriotas vermelhos”. A maioria pertencia à Associação Comercial Chinesa, onde pontificava Ho Yin, o patrão dos patrões.
Mas no final da década de 1950 e o principio da década seguinte, quando Jaime Silvério Marques governou Macau, os interesses desta elite, e em particular de Ho Yin, foram abalados pelas mudanças na atribuição de concessões, como recorda João Guedes: “Corria nessa altura, pouco antes do '1,2,3', que o governo português iria tirar a licença ao Ho Yin”. O investigador da história de Macau e ex-investigador da Polícia Judiciária recorda como importante o momento depois do atentado à bomba falhado contra Ho Yin, em Maio de 1966. A Polícia Judiciária, instalada em Macau havia dois anos, vai entrar em acção e desequilibrar o jogo de forças entre comunistas e nacionalistas: “Nesse momento, a Polícia Judiciária faz uma série de rusgas, nomeadamente em templos budistas, onde estava armazenado o armamento, e era muito, nacionalista. Alguns analistas dizem que isso terá desequilibrado definitivamente o jogo de forças em Macau. E os comunistas, que são muitos, mas não estão armados, finalmente encontram a oportunidade de passar para a mó de cima”.
De acordo com João Guedes, as associações tradicionais em Macau - das desportivas, onde se agrupavam as seitas, às de moradores - eram dominadas pelos nacionalistas, que também contavam com o apoio dos capitalistas: “Os comunistas praticamente não dominavam nada aqui em Macau, incluindo os dirigentes da Associação Comercial Chinesa, que eram todos nacionalistas. A Ho Yin há quem lhe chamasse comunista, no calor do ‘1,2,3’, como também ao Ma Man Kei. Ora, nenhum deles era comunista. O único era o Chui Tak Kei, o homem de quem não se fala. Falava português, é o homem que tem uma intervenção inicial no ‘1,2,3’, para a resolução da escola da Taipa, e depois a sua acção esbate-se, precisamente porque era do partido e o protagonismo é dado depois a Ho Yin e a Ma Man Kei”. João Guedes diz que no “1,2,3” se misturam diferentes agendas, nem sempre declarando à partida os objectivos. Havia muita encenação, diz o investigador: “Todas essas movimentações políticas da Associação Comercial e dos seus membros, e até dos comunistas, foram movimentações muito teatrais. Aquilo não correspondia seriamente ao que se passava. E depois foi por todos aproveitado. Também todo aquele caos da revolução cultural aproveitava a todos, nomeadamente ao governo chinês. Quando as coisas corriam mal, deitava as culpas para cima dos guardas vermelhos e estava resolvida a situação”. Foi neste contexto que a elite chinesa de Macau viu uma oportunidade na instabilidade política. Para Moisés Silva Fernandes, “era uma oportunidade única para os capitalistas compatriotas vermelhos prostrarem e fragilizarem a administração portuguesa”. O objectivo era evitar que a concessão do ouro caísse nas mãos da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, de Stanley Ho.
Mas não estavam em causa apenas os negócios da elite chinesa de Macau. O comércio do ouro também era de grande importância para a China. Com uma moeda que não era aceite no comércio internacional, Pequim vai depender do ouro transaccionado em Macau e Hong Kong: “É preciso ver que apesar de Macau ser muito pequeno em dimensão geográfica, por aqui sempre correram milhões e milhões. Pode dizer-se que cada membro da elite chinesa, como lhe chama Moisés Silva Fernandes, era um potentado e tinha a sua agenda, mas o Ho Yin tinha uma agenda particular, que era a do ouro”, observa João Guedes.
Segundo Moisés Silva Fernandes, a administração portuguesa era apenas “um actor menor no comércio deste precioso metal”, mas era ao mesmo tempo uma garantia. Daí que o regime de Mao Tse-tung, escreveu Moisés Silva Fernandes, tivesse adoptado uma postura de pragmatismo em relação à administração portuguesa de Macau. Nesse sentido, o investigador considera que “a dependência [do ouro] contribuiu para que [Pequim] tudo fizesse para garantir a continuidade da presença portuguesa no enclave (...) entre Dezembro de 1966 e Janeiro de 1967”, os dias mais quentes do “1,2,3”. À China de Mao convinha fazer uma demonstração de força, mas para “soviet” ver, diz João Guedes: “Era preciso, de alguma forma, satisfazer o comunismo e dizer que os imperialistas não estavam aqui à borla, nem com o consentimento dos comunistas chineses, e que quem mandava eram eles. Essa era a agenda do Partido Comunista Chinês, que não pretendia, de forma alguma, expulsar os portugueses daqui. Quem pretendia expulsar os portugueses, e nunca se fala disso, eram os nacionalistas. Eram eles que tinham essa agenda desde finais do século XIX”. Era um jogo de sombras, mas também um jogo de forças, no qual a elite chinesa sabia de antemão que Salazar queria a todo o custo evitar uma repetição do que tinha acontecido em Goa, em 1961, noutro fatídico mês de Dezembro.
A rendição de Goa
Cinco anos antes, em 1961, no dia 18 de Dezembro, a União Indiana atacou Goa, Damão e Diu com 30 mil homens, um número dez vezes superior aos três mil soldados portugueses que defendiam a chamada “Índia portuguesa”. Salazar dissera que não previa “tréguas nem prisioneiros portugueses”, apenas “soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”. Mas o governador Vassalo e Silva desobedeceu às ordens e rendeu-se em menos de 24 horas. Poucos dias depois da invasão de Goa, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Estado Novo, Franco Nogueira, propôs a Salazar uma viragem na política colonial. A mudança passava pela entrega de Macau à China. Salazar recusou dizendo-se “preso às ideias do passado”. Mas o ditador também se mostrava atento ao perigo vermelho que alastrava na Ásia, ameaçando toda a África. Por todo o lado, agitavam-se movimentos revolucionários e de independência. Salazar e o Estado Novo estavam cada vez mais isolados. “Orgulhosamente sós”.
Uma Igreja empenhada
Em Macau, fiel a Salazar era a Igreja, observa João Guedes: “A Igreja está dentro e fora da política ao mesmo tempo. Estando dentro da política, influencia directamente as decisões que são tomadas pelos políticos e, neste caso, pelo governador Nobre de Carvalho. Mas por outro lado, a Igreja não tem o tempo dos políticos. A Igreja tem a infinidade dos tempos. Há aqui uma questão de princípio muito clara. O Vaticano não reconhece os comunistas. Mais, o Vaticano está em guerra contra os comunistas”.
Para João Guedes, a Igreja tinha uma estratégia contra o inimigo comunista, e os padres em Macau faziam parte do esforço: “O padre Teixeira e todos os outros padres que estavam aqui, não eram de modo nenhum missionários isentos do ponto de vista político. Todos eles eram militantes da União Nacional, o partido único que havia em Portugal. A obrigação deles era dirigir politicamente o seu rebanho. [O bispo] Dom Paulo José Tavares, na altura, toma uma posição de firmeza contra os comunistas. Desde o princípio, dá ordens muito claras aos seus padres, que é lutar contra a subversão e enquadrar os alunos católicos. Ou melhor, os alunos que frequentam o ensino católico. E o ensino católico, nessa altura, tinha nas mãos quase toda a educação em Macau”.
Em Macau, a Igreja era a mais fidedigna caixa de ressonância de Salazar. A instituição há mais tempo em Macau, a Igreja tinha uma influência que ia além da tradicional esfera da comunidade portuguesa. Durante o “1,2,3”, esse poder foi usado, considera João Guedes: “Há uma tentativa de os comunistas obrigarem os estudantes das escolas católicas a seguirem a escola Hou Kong, nomeadamente na invasão do Palácio do Governo, e os alunos das escolas católicas são impedidos de o fazer. Isso demonstra que a Igreja Católica não tinha uma influência teórica sobre a população. Não, ela mandava, porque mandou que os alunos não colaborassem. E atenção, porque na altura, e hoje, a maioria dos professores era chinesa. E os católicos em Macau sempre foram muito poucos”.
A influência da Igreja de Macau chegava longe, sublinha João Guedes: “São os padres que mantêm Salazar informado do que se passava. Suponho que deve ter tido mais importância o que disse o cardeal Cerejeira ao Salazar, do que o que lhe disseram o governador Nobre de Carvalho ou Mota Cerveira, com os relatórios que fizeram aqui”.
Alguma coisa tem de mudar
A meio das negociações entre o governo português de Macau e a “comissão dos 13”, no dia 14 de Janeiro de 1967, Salazar escreve a Nobre de Carvalho. Com os acontecimentos em Goa ainda frescos na memória, o presidente do Conselho dava indicações sobre a atitude a tomar: “Não temos aí forças para bater as forças chinesas – seria uma impossibilidade – mas para garantir a ordem e lutar até ao extremo limite pela dignidade e pela soberania nacional. Contamos aqui que, em caso de necessidade, todos cumprirão o seu dever, mesmo com os maiores sacrifícios”.
Os “maiores sacrifícios” acabaram por ser o que muitos classificaram de humilhação. No dia 29 de Janeiro de 1967, um domingo, Nobre de Carvalho dirige-se à sede da Associação Comercial Chinesa, no Largo do Senado. Ali, em pouco mais de dez minutos, o governador assinaria dois documentos em que as autoridades portuguesas assumem toda a responsabilidade pelo que admitem ser “o incidente sangrento de 15 de Novembro na Taipa” e os “trágicos acontecimentos de 3 de Dezembro”. Comprometem-se também a não permitir “quaisquer actividades” de agentes nacionalistas no território. Ainda nesse dia, na China dá-se por terminada a “revolução cultural” em Macau. E
ra o fim de uma era, outra começava. Eduardo Tavares entende que “o ‘1,2,3’ deixou feridas em Macau que ainda não estão completamente saradas: "Entrei na comunidade chinesa e aperecebi-me que a compreensão não era muito grande. Essa falta de compreensão ainda se mantém. Ainda conheço hoje pessoas com mais de 70 anos que todas as recordações que têm são recordações negativas”. Depois do “1,2,3”, em Macau cumpria-se à letra o pensamento de Don Fabrizio, herói de “O Leopardo”, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa sobre os temores e a incerteza das revoluções: “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma".
Agradecimentos: TDM - Rádio Macau (texto); Fotos: arquivo Blog Macau Antigo

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