quarta-feira, 25 de abril de 2012

Reflexos das revoluções portuguesas em Macau

Maiores, ou menores, as repercussões das revoluções portuguesas fizeram-se sempre sentir em Macau com um impacto igual (ou quase igual) ao da Metrópole. Uma história que se repete desde sempre. Naturalmente que, noutros tempos as notícias andavam mais devagar, mas não é menos certo que produziam efeitos.
A revolução liberal de 1820 chegou ao sabor dos ventos das escunas, atracando a Macau com um atraso de dois anos. No entanto, quando chegou, provocou alterações de vulto transformando nomeadamente durante cerca de um ano a colónia portuguesa da China numa república virtualmente independente.
Oitenta anos depois (5 de Outubro de 1910), veio a República verdadeira, e Macau sofreu de novo o efeito das mudanças, ainda que de novo efémeras. Os heróis da Rotunda subverteram o regime na Metrópole do lado do Atlântico. Do lado do Pacífico, não em dois anos, como antes, mas em poucos dias, graças ao telex (sucessor do telégrafo do século anterior), sabia-se dos acontecimentos. A agência Reuter, precursora, pela palavra, da televisiva CNN dos tempos de hoje, dava as primeiras notícias da revolução, com um lapso de tempo que pouco ultrapassava os três dias reduzindo a lacónico telegrama o epílogo da saga da centenária Casa de Bragança;” Rei D. Manuel abandona Paço e refugia-se a bordo de fragata inglesa surta no Tejo”. Parcas e economicistas palavras para anunciar o fim de uma dinastia, plena de romance e de mistério que vinha da revolução restauradora de 1640, mas o progresso impunha-se…
Macau nos últimos anos do regime monárquico
No entanto, ressalvadas as diferenças de quase um século de progresso, a situação acabava por se repetir. Macau aceitava o impacto de mais uma revolução metropolitana, conhecia excessos similares aos de 1820, embora sem a dimensão daqueles e regressava depois à normalidade de sempre, sem mudanças excessivas, nem paixões inadequadas. Assim, passado o fervor revolucionário a quente, reposto o câmbio da pataca e substituída a edilidade, as alterações acabaram por se traduzir, quando muito, na conclusão dos ofícios que deixaram de ser em nome D`El Rey e passaram a desejar “Saúde e Fraternidade” …
Regressados os jesuítas, alguns anos mais tarde, Macau voltava obedientemente ao controlo do Terreiro do Paço e ao sossego.
Pelos dezasseis anos seguintes que mediaram entre a proclamação da República e a eclosão do 28 de Maio de 1926, movimento liderada pelo prestigiado marechal Gomes da Costa que Macau conhecia muito bem, tudo correu dentro dos limites da decência e da normalidade histórica. O Marechal, aos olhos de Macau, que o tinham visto crescer, era apenas um “pequeno estudante” que tinha sido educado no seminário de S. José (ao alto da Calçada do Tronco Velho) e que, regressado a Portugal, tinha feito a academia militar distinguindo-se nos combates da Flandres, durante a “Primeira Grande Guerra Mundial, nos idos de 1914-18. Todos lhe reconheciam mérito, mas não se podiam esquecer da sua juventude de aluno traquina, cujas proezas os velhos professores de S. José se lembravam, sorrindo, como sabem sorrir os sábios complacentes.
A revolução do marechal seminarista, ao contrário das anteriores, foi insidiosa. Mais insidiosa do que qualquer outra. Por isso, os seus efeitos em Macau não se mostraram tão drásticos, nem tão perversos. A marcha do marechal desde Braga até Lisboa não levantou fervores revolucionários particularmente assinaláveis, e os seus ecos em Macau limitaram-se tão somente a determinar por decreto a exoneração do governador Maia Magalhães nomeando Artur Tamagnini de Sousa Barbosa, um incondicional do novo estado de coisas (que ainda não era Estado Novo) para o substituir, ou seja, tudo dentro da discrição burocrática de um regime que não admitia excessos. Mas se excessos ouve, estes não passaram dos protestos e da ordem de deportação dada pelo novo chefe da administração local, ao Dr. Damião Rodrigues que teimava em continuar indefectível na senda republicana e ameaçava a “estabilidade” continuando a publicar os seus pontos de vista nos jornais. Mudanças significativas apenas se podem assinalar precisamente nos jornais, onde os directores passaram, por força de lei, a ter de ser licenciados, o que levou a que os democratas de antes, como José Constâncio da Silva (“A Verdade”) possuidor apenas do quinto ano liceal, tivesse que ceder (ainda que nominalmente) no cabeçalho da sua primeira página o título de director a um engenheiro maquinista naval. Quanto ao resto, o Território, adaptava-se ao Estado Novo sem sobressaltos de maior. A atestá-lo ficava o testemunho da conversão do dito Constâncio José da Silva, (maçon pertinaz e herético convicto), uns anos mais tarde, em Xangai, à hora da morte. Uma conversão igual à de Guerra Junqueiro umas décadas antes, significando no tempo e no espaço a distância a que Macau se encontrava de Lisboa e do correr do mundo.
Entretanto, Herman Monteiro, um dos democráticos (de Afonso Costa) exilados pelo novo regime chegava a Macau, eivado de ideias republicanas. Inconsciente (como todos os recém-chegados) da verdadeira realidade de Macau, Herman Monteiro, pegava no jornal de Constâncio José da Silva (que morria na China) e ressuscitava a chama da oposição ao Estado Novo, de parceria com o capitão Rosa Duque (também ele um republicano de velha cepa) conseguindo, através de denodados esforços, os capitais necessários para manter o diário do defunto de Xangai, antes que se finasse com ele por falta de fé… e de patacas. Mas, nem “A Verdade”, nem o seu sucedâneo “O Combate” eram já títulos capazes de se defrontar com a “normalização” tenaz e burocrática implementada por Salazar.
A verdade, era agora monopólio do Estado Novo e combate constituía vocábulo demasiado duro no léxico do ditador de Santa Comba que não se confrontava ainda com a guerra no Ultramar. Assim, talvez para agradar ao progresso e evitar cortes mais drásticos do lápis azul da censura, foi decidido mudar o cabeçalho que ficou a ser “Notícias de Macau”.
O “Notícias” foi um jornal irredutível durante alguns anos, até perder a importância da palavra conjuntamente com a liderança do capitão, morto no seu posto de combate como recomendava o Regulamento de Disciplina Militar e a ética democrática.
Herman Monteiro, assumiu em seguida a direcção da voz heterodoxa macaense em nome do republicanismo que, diga-se, perdia terreno face às novas ideias. Na cidade, o doutor Vivaldo Rosa, um conhecedor do mundo, por exemplo, defendia teses tão imerecíveis como as do marxismo-leninismo (supremo sacrilégio…!) detestadas por Salazar, escrevendo-as em entrelinhas no “Notícias” ainda que a contra gosto da censura e a contracorrente dos ideias do director do diário, que no entanto aceitava o facto e eventuais consequências com a convicção dos democratas tolerantes por natureza.
No entanto, a verdade é que Macau se encontrava demasiado longe da Metrópole. Para a cidade, ocupada por duas comunidades distintas (portuguesa e chinesa) movidas e unidas apenas por interesses económicos coincidentes, pouco importava o debate (ainda que universal) entre comunistas e fascistas que se desenrolava no mundo ocidental dos anos 30, 40 e 50. No Território, as ideologias discutiam-se de uma forma teórica e literária. O verdadeiro debate acalorava-se nas tertúlias do “Riviera”, mais fleumáticas, como afirmavam alguns e às discussões da Solmar (desde a abertura deste restaurante, em 1961), onde em amenas cavaqueiras macaenses, se criticavam os passos do governador, se forjavam os borrões de futuros decretos de lei, se dizia mal da Administração, ou pura e simplesmente se “cortava na casaca” de quem quer que fosse, entre dois copos de whisky. Para o microcosmos da Solmar, porém, tudo isso era o mundo, e o mundo era um pequeno território de dezasseis quilómetros quadrados, onde o “governador da Praia Grande” era discutido como se se tratasse de um Estaline, Churchill, Deladier, Eisenhower, ou simples presidente da freguesia, conforme os pontos de vista dos circunstantes e o calor da discussão. O próprio Herman Monteiro, já então perfeitamente adaptado ao longínquo Oriente, e esquecido dos gloriosos feitos da Rotunda de 1910, passou a considerar mais importante o diz-se que disse local do que as conspirações do Alfeite, transfigurando Salazar no governador e os seus ministros no secretário-geral do governo (solução redutora, mas perfeitamente adequada ao Território) reconhecendo-lhes os mesmos defeitos, daqueles. Embora como bom republicano, civilizado e observador dos bons costumes (ou não fosse também maçon), não deixasse de apertar a mão a um e a outro nas recepções oficiais da Praia Grande, ou do Clube Militar.
Resumindo: Macau continuava como sempre tinha sido, ou seja, uma verdadeira metrópole cosmopolita nuclearmente formada por chineses e portugueses, mas onde não eram estranhos ingleses, alemães, franceses italianos, filipinos, malaios e, sabe-se lá quantas outras nacionalidades, coexistindo todos em boa paz e harmonia conjuntamente com os conceitos revolucionários de Mao Tsé-tung, as ideias revisionistas de Moscovo pós Kruschev, o espírito liberal dos exilados da “Revolução de Maio” o anticomunismo primário dos russos fugidos da revolução de 17 e os próprios representantes do regime. Tudo isto envolto num cenário formado por duas ou três colinas verdes, alguns fortes espalhados pelos cumes, e um casario baixo, de arquitectura colonial que se mostrava aos visitantes com contornos mediterrânicos no espraiado semicírculo de frontarias da Baía da Praia Grande.
Enfim, um ambiente aparentemente plácido que formava a colónia mais distinta do ultramar português. Uma opinião reiterada pelo antigo governador Nobre de Carvalho ao salientar que “de mais a mais, como diziam até vários estrangeiros que tinham visitado outras colónias portuguesas, Macau era o território mais livre de todos, a não ser uma censura benévola que havia. Mas não havia Legião Portuguesa, não havia polícia política, não havia opressões não havia perseguições de nenhuma ordem. Havia Mocidade Portuguesa, mas sem grande relevância“.
Embora Macau não fosse o paraíso, como o antigo governador poderia deixar supor, registando-se aqui e ali casos de prepotências e compadrios, certo é que estes eram ditados muito mais pela política local do que por motivos de oposição ao regime da distante Metrópole. A mesma ideia, no que à censura se refere, é perfilhada pelo chefe de gabinete do governador, general (então major) Lajes Ribeiro que anteriormente tinha comandado a P.S.P. “Se em Portugal não tínhamos relações com países comunistas, também não tínhamos os livros publicados por eles e, se existiam eram clandestinos. Em Macau não. Em Macau toda a literatura comunista em todas as línguas estava nas montras! Toda a gente podia comprar. Nunca houve uma apreensão de um livro por estar no índex da PIDE. Devo dizer que, nós, na polícia, recebíamos o índex da PIDE e nunca na vida pensámos em entrar numa loja para apreender um livro. Aquilo que normalmente acontecia e que eu pessoalmente fazia era ver se ainda encontrava um exemplar para o comprar.(…) Os jornais chineses que são mais ou menos os que ainda agora existem, não eram vistos (pela censura). Não fazia sentido que o fossem, quando acabei de dizer que as livrarias vendiam tudo quanto, digamos, havia na antologia comunista. Não era a um artigo de jornal que nós podíamos fazer censura. Não tinha lógica. Os jornais portugueses, sem dúvida nenhuma, que mandavam as provas para os vogais que estavam de serviço. Não tenho de cor o número de cortes que tenham sido feitos. Mas do que me recordo é que algum artigo que eventualmente pudesse ter algum toque a que o governador fosse mais sensível eu levava-lho (ainda que isso raramente acontecesse). Ele lia e perguntava sistematicamente a mesma coisa: - O que pensa?
- Eu acho que deve ser publicado. - Então publique“.
Início da Av. Dr. Rodrigo Rodrigues à direita e Estrada de S. Francisco à esq.
Fotografia de meados da década de 1970
Tal situação permitia que muitos militares pudessem tomar contacto pela primeira vez com o socialismo, lendo as obras de Mao Tsé-tung, com a discrição devida, mas sem receio de serem presos pela PIDE. Entre estes ter-se-há contado o próprio Arnaldo Matos, antigo dirigente maoista (fundador do MRPP), que como oficial miliciano, fez a sua comissão de serviço em Macau nos tempos da guerra colonial.
Mas se a circulação da literatura subversiva se introduzia nos quartéis da guarnição portuguesa local mais facilmente ganhava adeptos e incendiava os espíritos da comunidade chinesa, principalmente dos jovens, contribuindo com a sua quota parte para que o caldeirão ardente da Revolução Cultural tivesse transbordado para Macau.
Em 1966 Macau tinha vivido um momento de incertezas. A Revolução Cultural da China, provocara danos incalculáveis que se estenderam ao Território onde os guardas do socialismo (operários e estudantes) empunhando o “livrinho vermelho” tinham tido a ousadia de invadir o palácio da Praia Grande (derrubando as barragens policiais ) e obrigando o recém chegado governador Nobre de Carvalho, ignorante do que se passava a ouvir em indecifrável cantonense as palavras revolucionárias de Mao Tsé-tung, facto que para além de ofender a ordem pública, perturbava o normal despacho da burocracia governamental que teimava em continuar apesar do “cataclismo” em curso.
Nobre de Carvalho, apesar de ter sido avisado do que se passava apenas à chegada a Hong Kong pelo seu homólogo britânico, saiu-se menos mal do caos político oriental conseguindo, ao contrário de Vassalo e Silva (em Goa) salvar Macau de uma eventual (ainda que muitos considerem duvidosa) invasão e retomar o ritmo de crescimento económico que se prefigurava antes, mas que tinha sido brutalmente interrompido quando ainda mal dava os primeiros passos. Mas, Nobre de Carvalho “teve muito azar. Quando chegou a Macau apanhou com o 1, 2, 3, sobre o qual sabia talvez menos do que eu e no fim do mandato com o 25 de Abril”, recorda o então director da Rádio Macau, Alberto Alecrim. Mas se o governador nada sabia da Revolução Cultural que conheceria do que se preparava em vésperas de 25 de Abril de 1974? Provavelmente ignorava tudo. Quando muito, o seu chefe de gabinete; Lajes Ribeiro seria o mais avisado para os efeitos que uma guerra colonial, que se prolongava há 13 anos consecutivos, provocava nas fileiras militares, cada vez mais desmoralizadas. Isto a avaliar pelos contactos que tinha mantido pouco antes na Metrópole durante um breve curso de promoção com oficiais que participariam activamente na revolta de Abril, nomeadamente com o major Ramalho Eanes. O regresso a Macau afastou-o porém dos corredores da conspiração impedindo-o de seguir os acontecimentos. Quanto à generalidade da população mantinha-se alheia já que as notícias de Portugal chegavam previamente censuradas de Lisboa aos jornais e os rumores trazidos pelo correio, ou por um ou outro novo oficial que chegava não eram nem suficientemente claras nem consistentes para provocar mais do que boatos. A tentativa fracassada de sublevação do regimento de infantaria 5 das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, também não esclareceu ninguém já que mais uma vez os três jornais de Macau (“Gazeta”, “Notícias” e “Clarim”) recebiam apenas para publicação inócuos telexes da Agência ANI informando que “a situação estava calma em todo o país” e nada mais. Por seu turno o serviço mundial da BBC, retransmitido pelas rádios de Hong Kong e amplamente escutado em Macau pouco mais acrescentava. No entanto, ” que o ambiente andava tenso em Portugal todos sabíamos, mas ninguém esperava uma acção tão súbita das forças militares. E que a insatisfação no país e a guerra em África tinham de ter um desfecho, também se sabia“, escreve nas suas memórias” Graciete Batalha, professora do ensino secundário e membro do então Conselho Legislativo.
Cruzamento San Ma Lou ca. 1974. A partir de uma foto de JR
Mas, apesar da sensação de que algo ia mal na Metrópole certo é que tal facto esteve longe de constituir óbice à reunião solene da sessão legislativa para ouvir um longo discurso do governador Nobre de Carvalho, no qual figurava as grandes linhas de acção futura, com destaque para os grandes benefícios que a eminente conclusão da ponte entre Macau e a Taipa traria ao Território. Terminado o discurso foi a vez do deputado Henrique de Senna Fernandes, agradecer protocolarmente a presença e os esclarecimentos do governador. Depois disso e também de acordo com o costume, o Conselho elaborou o habitual telegrama de apoio ao regime e à sua política ultramarina. Fui até eu que redigi o telegrama, que seguiu para Lisboa (chegando à capital precisamente no dia 25 de Abril), lembra Senna Fernandes, que acrescenta: – Fi-lo com convicção, porque nós ultramarinos gozava-mos de uma situação privilegiada no antigo regime. Sentíamo-nos garantidos com essa política.
Comemorações 10 de Junho 1973 - Canídromo - Foto de JR
Vinte anos depois, Senna Fernandes recorda com humor a situação então vivida que no entanto, quando chegadas, as notícias da revolução estiveram longe de constituírem novidade que lhe fosse agradável: Cerca das três e tal, da tarde do dia 25 de Abril fui para o meu escritório, quando recebo um telefonema do Pedrinho Lobo que me diz: “Tu estás lixado! Acabaste de fazer o discurso de apoio ao regime e o regime caiu”. Cinco minutos depois telefona-me meu pai a dizer também que Marcelo Caetano e Américo Tomaz “tinham ido ao ar. Claro que já não trabalhei mais nesse dia. Eram notícias tão impossíveis para nós que tínhamos sido criados no regime“.
Durante todo esse dia Alberto Alecrim continuou a manter no ar a programação normal da rádio, sem que os telexes das agências Reuter e France Press, recentemente instalados nos estúdios da emissora mostrassem nada que merecesse destaque especial nos boletins noticiosos. Só à noite Alecrim soube da revolução e não através dos telexes, mas sim graças a um visitante da emissora. “Ficamos logo a recolher toda a informação disponível nos telexes e nas rádios estrangeiras, que levei depois ao Portas do Sol onde estava o senhor major Lajes Ribeiro a jantar (era o Abril em Portugal que se comemorava todos os anos) e a quem entreguei tudo o que tinha podido recolher." Mas o chefe de Gabinete do Governador já sabia.
- "Já sabia porque a notícia chegou-me por um telefonema do posto de rádio da polícia o qual recebia a Press (então assim chamada) que me deu conhecimento de que tinha acontecido o movimento e tinha sido feita aquela declaração inicial que recebi passado algum tempo e tive ocasião de dar a notícia ao major Rocha Vieira (Chefe do Estado Maior do Comando Territorial Independente de Macau). Foi com muita alegria, porque todos nós, ou pelo menos muitos de nós ansiavam que a solução viesse". Esclarece Lajes Ribeiro.
Independentemente das suas próprias convicções, também o governador Nobre de Carvalho confirmava em entrevista à televisão de Macau, onze anos depois dos acontecimentos que “o 25 de Abril foi recebido bem por todos os portugueses e chineses. Os chineses, evidentemente, tendem uma ignorância grande sobre o que se estava passando embora eu tivesse tido ocasião de no Conselho Legislativo, com as notícias que recebia de Lisboa de os pôr ao corrente do que se passava.“
No entanto, Macau ouvia com cautela as novas informações que iam chegando, estando longe de registar (como seria de esperar, aliás) as esfusiantes cenas das ruas de Lisboa. “Aqueles factos mais emblemáticos do 25 de Abril, não tinham possibilidade de concretização em Macau. Em Portugal, foram abertas as prisões e soltos os presos políticos, mas Macau não tinha presos políticos. Foi o encerramento da PIDE/DGS, até com cenas de algum dramatismo. Mas Macau era o único ponto do território português que não tinha PIDE/DGS". Sublinha Lajes Ribeiro.
Se alguns vivas se pronunciaram, ou garrafas de champanhe se abriram em honra da revolução não foi nas ruas mas tão-somente na discrição disciplinada de alguns quartéis ou na intimidade das casas dos democratas.
Panorâmica do Porto Interior - 1973 - Foto de JR
O primeiro sinal verdadeiro de entusiasmo e rebeldia que se quadunava perfeitamente com o espírito da revolução veio não em forma de manifestação, de rua mas através de um soneto à liberdade do poeta proscrito Manuel Alegre, declamado de forma arrebatada em plena sessão do Conselho de Governo. Quem o fez foi o jovem deputado Celestino Maneiras, um arquitecto formado no Porto, que ali se tinha ligado aos círculos estudantis da oposição. Um acto inesperado que deixou estupefactos os seus colegas. Mas a atitude do jovem deputado ainda que de uma forma anti-regimental limitava-se a declarar oficialmente autorizada a liberdade de pensamento e expressão no território português da China. O caso ocorria na véspera da fundação da primeira associação cívica, o Centro Democrático de Macau agrupamento de democratas de diversas tendências formado com vista a contribuir para a democratização de Macau. Na sua fundação, claro, o arquitecto José Maneiras, o igualmente irrequieto advogado oposicionista Jorge Neto Valente e naturalmente os velhos republicanos, como Damião Rodrigues e Vivaldo Rosa.
Mas exceptuando um ou outro pronunciamento claro a timidez continuava imperar, ainda que no dia 29 de Abril, os deputados (que então ainda não possuíam essa designação) tivessem concordado em rever a situação vivida por Senna Fernandes alguns dias antes (por ocasião do telegrama nacionalista) e a insistência do governador decidissem enviar novo telegrama para Lisboa, mas desta vez de incondicional apoio à Junta de Salvação Nacional.
Para além de uma deputada que se recusou a aprovar o teor do texto, ninguém mais pareceu registar qualquer contradição no facto. O governador Nobre de Carvalho, acabava de anunciar ter sido confirmado no cargo pelo novo poder de Lisboa, o que era bom sinal, levando a generalidade os deputados a acreditar nas boas intenções dos elementos da Junta, entre os quais se contava o general Jaime Silvério Marques que governara Macau (1959/62) e ao qual foi enviada também uma mensagem especial de regozijo.
À margem das mensagens oficiais, um amplo grupo de democratas reunia-se entretanto no restaurante Fat Siu Lau, à rua da Felicidade redigindo igualmente um telegrama emocionado dirigido por intermédio do “Jornal Republica”, um dos símbolos da luta contra Salazar e Caetano, a todos os portugueses. Nele saudavam “o patriótico movimento de 25 de Abril que pôs fim ao período fascista“, celebrando também o facto de levarem a cabo a primeira reunião política aberta, em Macau, dos últimos 40 anos. Ao fim da noite, os 38 subscritores da missiva abandonavam por entre vivas e aclamações o restaurante de regresso a casa sem receio de terem cometido qualquer acto sedicioso, ou virem a ser presos pela polícia.
Mas, a reunião do Fat Siu Lau, apenas culminou um dia de conquistas democráticas. Nessa mesma tarde, o chefe de gabinete do governador, reunira no Palácio da Praia Grandes os directores e representantes dos jornais comunicando-lhes oficialmente o fim da censura em Macau. Lajes Ribeiro fazia-o com agrado. Depois de numa primeira vez se ter recusado a integrar como vogal a comissão de censura, ao ser para o efeito convidado quando era ainda oficial da polícia, acabaria por se tornar seu presidente, alguns anos mais tarde, por constituir obrigação inerente ao cargo de chefe de gabinete, facto de que não se apercebera antes de aceitar o convite de Nobre de Carvalho.
Gov. Nobre de Carvalho no Ano Novo chinês de 1974 - Foto de JR
Na sequência da fundação do CDM, também as forças conservadoras locais se sentiram na necessidade de se agruparem fundando a “Associação para a Defesa dos Interesses de Macau” (ADIM), liderada pelo antigo deputado à Câmara Corporativa Carlos Assumpção. Ao contrário do CDM, não eram os objectivos de democratização da sociedade o seu principal objectivo, mas sim a criação de um grupo de pressão capaz de lutar contra os receios de alguns sectores da população local de que o processo de descolonização encetado pudesse ser de alguma forma (pensada, ou apressada) aplicado em Macau. Com a formação da ADIM, ainda que claramente conservadora, acentuava-se a pressão no sentido da transformação das estruturas coloniais ancilosadas que Nobre de Carvalho, embora aderindo aos novos princípios do regime e implementando “as alterações que podia” não estava em condições de fazer.

Entretanto nos quartéis registava-se uma certa turbulência, reflectindo as mudanças de conceitos e de objectivos das forças armadas que punham termo à guerra e ocupavam o centro do poder político.Os principais responsáveis militares, entre os quais se contava o chefe de estado maior, Rocha Vieira, mais tarde delegado do MFA em Macau procuravam manter a agitação que fervilhava entre os milicianos (oficias e sargentos) dentro dos limites que consideravam aceitáveis perante o novo quadro político, enquanto Nobre de Carvalho que aguardava indicações claras de Lisboa sobre qual a direcção a seguir fazia saber que fosse qual fosse a evolução dos acontecimentos deixaria o território no final do mandato para que tinha sido nomeado, ou seja Outubro de 1974.
Embora beneficiando ainda da simpatia de grande parte da população, simpatia que lhe advinha dos tempos conturbados do 1,2,3, Nobre de Carvalho começava a tornar-se alvo cada vez mais exposto. “Grande parte da população não aceitava a sua continuação, sofrendo por isso uma grande contestação durante muitos meses” recorda o general Garcia Leandro, que seria juntamente com o major Rebelo Gonçalves o primeiro a deslocar-se a Macau como enviado oficial do novo regime para esclarecer a população local e ouvir o que esta tinha a dizer. O próprio Nobre de Carvalho, por seu turno, ia mais longe no desenho do quadro local preferindo usar o termo revolução em vez de contestação: “Foi uma outra revolução, que houve, desta vez dentro da população portuguesa. Principalmente, (chinesa não) macaenses e outros europeus. Mas foi uma minoria que estou convencido (muitos já morreram) que no fundo se devem ter arrependido do que fizeram porque foi uma vergonha essa actuação“. Apesar destas amargas palavras, o velho general no entanto não chegaria a conhecer os verdadeiros tempos de agitação que se seguiriam em Macau após a sua resignação.
Macau, foi desde sempre vista de Lisboa muito mais como uma pérola exótica do que uma colónia credível. Por isso não é de admirar que no computo dos problemas gerados pela descolonização de regiões tão vastas, como Angola, Moçambique, ou mesmo a Guiné, o território português do Oriente permanecesse durante algum tempo na gaveta dos assuntos pendentes da revolução, protelando a chegada dos representantes oficiais do governo de Lisboa que trouxessem indicações claras sobre o que ia acontecer, facto que parece ter contribuído para fazer aumentar os receios, ainda que a República Popular da China parecesse do mesmo modo não ter pressa em dar qualquer indicação das suas intenções sobre o futuro do território.
O vazio que se sentia levou o governador a enviar a Lisboa o seu chefe de Gabinete que manteve um encontro com o ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos, e trouxe boas notícias: – vim de lá com uma certa tranquilidade porque senti que o ministério estava a encarar o governo de Macau com muito realismo, com muito pragmatismo e foi quando ele anunciou que viria a Timor e a Macau. Mas esta boa impressão trazida por Lajes Ribeiro, não parecia capaz de apaziguar receios. Por isso, quando é anunciada a deslocação de Almeida Santos para tratar da descolonização, a notícia é recebida com certo pânico principalmente entre a população chinesa registando-se mesmo corridas aos bancos.
Tentando desdramatizar a situação, o governo esclarece que o termo descolonização contido no dossier de Almeida Santos se referia exclusivamente a Timor. Os esclarecimentos porém não produziram efeitos seguros, tanto que Garcia Leandro, que acompanharia Almeida Santos na sua viagem ao Oriente, refere ter encontrado em Macau “um grande receio. Era como se para a população local o 25 de Abril tivesse aberto uma grande porta para lá da qual era a mais completa escuridão", sublinha.
No entanto, passada a euforia inicial, uma parte da população, incluindo a comunidade chinesa não escondeu apreensões relativamente ao futuro. A descolonização tomava a prioridade em todas as agendas de Lisboa e nenhuma indicação chegava que permitisse claramente depreender que Macau seria tratada de maneira diferente de Angola, Moçambique, Guiné, ou Timor.
É nesse contexto de ansiedade que o Ministro da Coordenação Interterritorial do primeiro governo provisório efectua a sua primeira deslocação ao Oriente, uma deslocação vista com ansiedade não só por Macau, como também pela vizinha Hong Kong, onde o governador enviou insistentes telegramas a Almeida Santos para se encontrar com este antes de embarcar no “hidrofoyl” para Macau. Almeida Santos encontrou-se de facto com o governador britânico e procurou descansa-lo.
Essa ansiedade crescente que Almeida Santos, depois de ter estado em Timor, onde se colocava de facto um problema de descolonização que era necessário resolver decidiu passar por Macau. Quando chegou constatou as informações que possuía:
Quando cheguei havia uma grande ansiedade de facto. A pataca tinha baixado de cotação e as pessoas estavam preocupadas. Qual vai ser o futuro de Macau? E eu pude fazer uma comunicação pública num teatro da cidade em que afirmei: Macau é uma jóia rara. É um caso especial, para nós não é uma colónia. Para Macau não se põe o problema de nenhum processo de descolonização. Isso aquietou os ânimos. No dia seguinte a cidade era outra e eu fiquei muito feliz por ter contribuído para desfazer essa ansiedade.

Gazeta Macaense - suplemento em inglês: 30 Abril 1974
Antes, porém, Nobre de Carvalho teria ainda ensejo de concluir da melhor maneira o seu atribulado mandato inaugurando em Outubro, como estava previsto, a nova ponte entre Macau e a Taipa que receberia o seu nome. Cinco dias depois partia para Lisboa convencido de que “Macau não viria a beneficiar muito com o 25 de Abril. – Viria a beneficiar sim, de uma maior representatividade dada à população nos órgãos do governo próprio do Território e nas autarquias. Isso impunha-se e principalmente aquilo que eu nunca tive, que era ter maior liberdade de acção, não estar piado como sempre estive em consequência das leis que então estavam em vigor, pelo Terreiro do Paço, digamos, por Lisboa."
A opinião de Nobre de Carvalho é subscrita muitos anos depois por Garcia Leandro que sublinha: “A primeira impressão com que fiquei foi que o território teria grandes possibilidades de desenvolvimento, estava numa área económica muito importante, mas devido ao sistema político que existia então se encontrava atrofiado“.
Depois da partida de Nobre de Carvalho, o inevitável processo de adaptação às novas condições levantou ainda mais a agitação, centrada quase exclusivamente na comunidade portuguesa civil e militar. Nos meses seguintes acentuaram-se clivagens e divergências, a polémica redobrou nos jornais e os comícios inflamaram-se mais ainda, culminando num período que registou algumas semelhanças com que ficou conhecido em Portugal por “Verão Quente” de 1975. Todavia, apesar das divergências de pontos de vista é hoje unânime que mais do que qualquer outro anseio, o 25 de Abril trouxe para Macau acima de tudo uma autonomia que tardava pelo menos desde que os liberais de 1822 tinham fracassado na sua tentativa de se eximir à obediência de Goa.
Vista sobre Leal Senado (ao meio), Penha (ao fundo), Sé (à esq.) em 1971
Tanto para os democratas como para os conservadores de Macau, as notícias da eclosão do 25 de Abril de 1974 causaram generalizada satisfação. Para os primeiros abria-se uma nova era de liberdade. Para os outros entreabria-se a possibilidade de conseguir a tão almejada autonomia do Território ansiada desde os idos da revolução de 1822.
Garcia Leandro um oficial ligado ao M.F.A. e desde o início vocacionado para os assuntos de Macau, manteve-se no Território auscultando a população sobre o perfil do novo governador que substituiria Nobre de Carvalho a quem Almeida Santos perante o teatro Diocesano repleto, teceria um “rasgado” elogio. Pouco depois, o jovem major regressaria a Portugal para voltar de novo, mais tarde, dessa vez graduado em coronel a fim de Ocupar o assento vago do Palácio da Praia Grande. Seria o primeiro governador de Macau da era pós revolução.NA: extraído do livro “Laboratório Constitucional” de João Guedes, editado pelo IPOR em 1995

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