sábado, 2 de fevereiro de 2013

Macau no início do século XX

No livro “Macau”, editado pela Imprensa Nacional em 1950, Francisco de Carvalho e Rêgo, dedica um capítulo ao início do século XX no território. Chamou-lhe “Macau... há quarenta anos”... portanto, cerca de 1910
“O Natal foi sempre festejado com grande pompa, não faltando famílias que recebessem, em seus verdadeiros solares, todos os seus amigos, oferecendo-lhes ceias pantagruélicas a que todos assistiam, finda a missa do galo, à qual não faltava um só.
No Carnaval, Macau vivia dias da maior alegria: no sábado, o baile do Clube de Macau, a rigor, obrigando a casaca ou a costumes sempre reveladores de bom gosto e distinção; no domingo, realizava-se, geralmente, um baile, também a rigor, em casa de qualquer família endinheirada; na segunda-feira o Grémio Militar abria os seus salões e, do mesmo modo que o Clube de Macau, recebia principescamente; e na terça-feira de Carnaval havia o baile de mascarados, no Clube de Macau, baile verdadeiramente carnavalesco onde se usava e abusava da graça inconveniente. As ‘matinées’ para as crianças não faltavam e era um encanto ver o cuidado com que eram apresentados, em trajes engraçadíssimos, esses homens em miniatura.
Pelas ruas não faltavam as tunas, que caprichavam em se apresentar o melhor possível, sempre seguidas de dezenas de mascarados que, muito antes da época carnavalesca, assaltavam as casas das pessoas amigas, proporcionando momentos de grande hilariedade. E os mascarados isolados, com graça e sem ela, também apareciam para contentamento dos garotos chineses que atrás deles corriam repetindo a célebre frase do dialecto macaense: ‘Aqui bobo’.
A ligação da ilha Verde à Península de Macau é uma das obras marcantes do início do séc. 20
Também o ano novo chinês era muito festejado e por todas as ruas se viam as bancas de ‘clu-clu’, jogo que era explorado por gente de poucos recursos, onde todos, desde as crianças aos velhos, arriscavam a sorte. Era à meia-noite da antevéspera que o governador da colónia dava início à festividade, jogando uma parada de cem patacas num ‘fantan’ instalado num velho edifício, que hoje já não existe, e que estava situado a meio da Rua das Estalagens.
Casa de jogo. Anos 20-30
Então, a população da colónia andava no ‘Bazar chinês’ em vaivém constante, dos ‘fantans’ para as bancas de ‘clu-clu’ e destas para os restaurantes chineses, sempre comendo pevides e frutas cristalizadas. Duravam cinco dias estes festejos e todos se julgavam na obrigação de jogar, fosse o que fosse: era costume! Mas a vida era fácil e o dia de amanhã pouco ou nada preocupava aqueles que julgavam que tudo era eterno e sempre gozado em leito de rosas.
Na sociedade macaense não faltavam grupos de amadores de teatro e música e era geralmente Constâncio José da Silva, advogado provisionário, o animador e organizador dessas manifestações de arte.
Ainda ouvimos falar nas zarzuelas que tinham sido levadas à cena, no Teatro D. Pedro V, e até na subida à cena da ‘Ceia dos Cardeais’, por um grupo de distintos amadores, entre os quais tinha figurado o escritor Cristóvão Aires. As distintas pianistas Condessa de Sena Fernandes e Madame Charles Ricou tomavam parte em concertos, que ora se realizavam no Teatro, ora em casas particulares. Recordamo-nos de ter ouvido, como violinistas, Constâncio José da Silva e os oficiais da Armada, Atouguia Pinto Basto e Samuel Pessoa. A Macau vinham também companhias inglesas de opereta e pequenos grupos de artistas, que andavam em tournée pelo Oriente.
E era assim esta linda cidade de Macau! A todo o canto se encontravam bocados de Portugal, nos becos e ruelas, alguns dos quais o tempo ainda não desfez.
E, ao domingo, após a Missa das onze horas, era a Rua Central o ponto de reunião, lugar onde as senhoras faziam as suas compras nas lojas dos mouros, que outra rua não havia, nem outras lojas onde as compras pudessem ser feitas. Eram as lojas dos mouros Elias, Cassam, Bachoo, Somar, Agi, Mahomed, bem como as lojas dos chineses Mei-Nam e Mei-Fat, estas duas de curiosidades orientais, que prendiam as atenções dominicais, ou serviam de pretexto para encontros, julgados sempre casuais. À tarde eram pontos de reunião o ‘Ténis Harmonia’ e o ‘Ténis Militar’, o primeiro situado na chamada Horta do Espírito Santo e o segundo no Chunambeiro, na extremidade sul da Praia Grande, antes da Fortaleza do Bom Parto, que à mesma praia serve de limite.
Fortaleza de N. Sra. do Bom Parto no final do séc. 19
No Verão eram vulgares os passeios na Praia da Areia Preta, que começava logo após a Rampa dos Cavaleiros. Então, era curioso ver os ‘rickshaws’ particulares a dois e três ‘cúlis’, fardados, com monogramas de prata, indicativos das famílias a que pertenciam. Só o Palácio do Governo e o Paço Episcopal tinham vitórias puxadas a uma parelha de ‘ponies’ australianos. Os Condes de Sena Fernandes e a Família de Francisco Xavier Brandão tinham charretes puxadas a um cavalo. O luxo era extraordinário, a ponto de se dizer em Hong Kong que Macau era a Paris do Sul da China.
A Banda Militar, como já dissemos, tocava, à noite, na Praia Grande, junto ao Palácio do Governo, aos domingos; às quintas-feiras, no Jardim de S. Francisco e às terças-feiras, na Avenida Vasco da Gama. O Governador recebia aos domingos e, da varanda do Palácio, ouvia-se tocar a Banda, que se esmerava em escolhido programa, sob a regência de Eusébio Placé, alferes músico. Por essa época apareceram em Macau as primeiras exibições cinematográficas, que se realizavam no Teatro ‘Cheng Peng’, sendo depois construído à beira-mar, no Porto Interior, um barracão onde essas exibições eram exploradas pela firma ‘Ramos e Ramos’. Os lugares da galeria eram luxo para ricos e custava cada bilhete vinte avos.
De vez em quando, vinham à colónia companhias de circo, que acampavam no Tap-Seac e faziam as delícias da população. Como ainda hoje, tinha Macau recantos de poesia e recolhimento e a todos sobrelevava a ‘Gruta de Camões’, que a tradição diz ter estado em Macau. Os piqueniques eram constantes, para a Ilha da Lapa, para Vo-Mau-Ché, e para as Ilhas da Taipa e Coloane, sendo também vulgares os piqueniques que se realizavam na ‘Montanha Russa’, na ‘Ilha Verde’ e nas chácaras das Madres e do Leitão. Macau vivia, pode dizer-se, em festa permanente.”
Postal 'colorido': edição ca. 1908

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